topo_cabecalho
Artigo - O último voo do flamingo

Benedito Antonio Luciano*

 

Originalmente lançado em Portugal, pela Editorial Caminho, em 2000, e no Brasil pela Companhia das Letras, em 2005, o romance “O último voo do flamingo”, de autoria do premiado escritor moçambicano Mia Couto, é um romance do gênero realismo fantástico. Deliberadamente, a editora optou por manter, inclusive no título, a ortografia vigente em Moçambique, mas introduziu um glossário para que o leitor possa compreender o significado de determinados termos.

 

A narrativa do romance é ambientada na pequena vila de Tizangara, em Moçambique, no contexto histórico do pós-guerra da independência, quando antigos ativistas de esquerda estão no comando e empreendem um jogo de poder pautado pela corrupção, pelo favorecimento e pela indiferença ao sofrimento do povo africano.

 

Nessa imaginária Tizangara, entram em confronto forças que se opõem: tradição e modernidade, informação e sabedoria secular, ritos e destruições, religião e feitiçaria, política interna e política externa, amor e ódio, realidade e ficção.

 

O texto de Mia Couto, em “O último voo do flamingo”, é denso. Nele, muitas palavras, à semelhança de Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”, são (re)inventadas. Em certas passagens de “O último voo do flamingo” o leitor precisa fazer esforço para compreender o sentido do texto, como por exemplo, no seguinte trecho: “Viver é fácil: até os mortos conseguem. Mas a vida é um peso que precisa ser carregado por todos os viventes. A vida, caro senhor, a vida é um beijo doce em boca amarga. Se acautele com eles, meu amigo. Uns não vivem por temer morrer; eu não morro por temer viver. Entende, o senhor? O tempo aqui é de sobrevivências”.

 

No romance “O último voo do flamingo” o personagem principal é um nativo negro, nomeado tradutor oficial a fim de recepcionar e acompanhar um italiano, integrante das forças de paz da ONU, que chegara a Tizangara para investigar estranhos acontecimentos que deixaram a população local aturdida: soldados das Nações Unidas começaram a explodir misteriosamente, restando desses apenas as boinas azuis, as botas e os órgãos genitais, um deles encontrado no meio da rua.

 

Guiado pelo tradutor, que narra o romance, o representante da ONU ao iniciar seu trabalho de investigação, se vê envolvido nas misteriosas histórias dos moradores e nas tortuosas relações políticas locais. Os depoimentos dos personagens habitantes de Tizangara são contraditórios e enigmáticos. São histórias impressionantes como a de Temporina, uma mulher de corpo jovial com feições de anciã; da prostituta Ana Deusqueira; do administrador Estevão Jonas e sua esposa; do padre Muhando; do feiticeiro Zeca Andorinho e do pescador Suplício, pai do tradutor.

 

Em “O último voo do flamingo”, em meio ao enredo e as histórias dos personagens, Mia Couto tece uma crítica contundente aos semeadores da guerra e da miséria, e à ganância dos poderosos. Mas, também elabora uma trama em que poesia e esperança dependem da capacidade narrativa de contar a própria história por meio de vozes africanas autênticas. Pois, conforme a tradição local, o flamingo faz o sol voltar a brilhar depois de um período de trevas e opressão.

   

* Benedito Antonio Luciano é professor do Departamento de Engenharia Elétrica da UFCG.

 

**As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição.


Data: 27/04/2015