ARTIGO - Palimpsestos: marcas de seres humanos que não se apagam Wagner Braga Batista O que são palimpsestos? São imagens raspadas, mal apagadas em superfícies, que ressurgem com o tempo. Assim como em escassos pergaminhos, utilizados na antiguidade para a escrita e grafismos, as cidades e seus apetrechos conservam marcas do tempo que não se apagam. Monumentos e paredes de edificios, assim como pedras calcáreas de litografias, preservam, quase invisiveis, vestigios de sua História, que não se apagam. Como registros que não foram suprimidos e esquecidos, continuam gravados em seu presente. As imagens originais, renitentes e recorrentes, ressurgem como registros incomodos. Interferem na leitura do tempo recente. São a História e a consciência social impondo-se às versões dos fatos que não qurem calar. Assim como em Belo Horizonte, indigentes, pobres e miseráveis, assomam. Não conseguem ser apagados pelas grades protetoras de shoppings, edificios, prisões e praças públicas. Tampouco paralisados pelos muros e por redes elétricas que cercam quase todas moradas. Espalham-se por grandes e exuberantes cidades. São registros que não se apagam. Para estorvo de tantos, colocam em xeque a exuberância metropolitana, o fulgor da economia de mercado e assimétrica sociabilidade. São palimpsestos desconfortáveis que dificultam a leitura e o consenso forjado da modernidade ensejada pela restauração liberal. Constituem memória atualizada das perversões e exclusões, que não figuram nos apetitosos cadápios da especulação imobiliária, das bolsas de valores e da economia de mercado. Palimpsestos se fazem presentes na cultura urbana. São parte de estratégia excludente que, em nome da revitalização de cidades, as destroi. Marginaliza seres humanos, digere nossa memoria e apaga a perspectiva do que podemos ser. Do espetáculo hediondo que promove a a violência, a perversão e a exclusão social para naturalizar a falta de direito à vida humana. Os palimpsestos humanos trazem indeléveis cicatrizes. Marcas provocadas por sua história. À margem das vitrines, do luxo e da ostentação, com suas deformidades, sujeira, dores e mazelas questionam a sociabilidade perversa que reproduz a sociabilidade de outrora. Remetem à possibilidade de futuro, raspada dos anais do presente. Sob viadutos, marquises, locais fétidos e ermos estes registros incomodos subsistem. Subtraídos de colunas sociais sobrevivem em óbitos de desconhecidos e em noticiários policiais. Como menções dramáticas, contribuem, ao seu modo, para resguardar a liberdade daqueles que lhes negam direito à vida e à expressão. Em BH, como em tantas cidades do mundo, ressurgem em muros rotos e em paredes retintas. Em metáforas de artistas e poetas de rua, que também se apagam como grafites e colagens desbotados pela chuva, pelo vento e pela poeira das avenidas. Nos trazem à lembrança esta gente sem vida, quase invisível, que vaga ao nosso lado. Homens, mulheres e crianças, que dia a dia, assomam ao tempo em que são apagados. Subtraidos deste cenário opulento, de cidades e de públicas políticas, convertidas em meras peças de publicidade. Nas noites de Belo Horizonte, esta gente sem vida sobrevive escondida. Esconde-se da solidão, do negrume e do frio sob caixas de papelão. Só assim, magicamente, torna-se visivel. É identificada pelo grande comércio, pelos clubes de serviço, pelos senhores dos espaços públicos, pelos donos de ruas e pelos agiotas de condominios. Escondidos da fome e do frio tornam-se zumbis criminalizados. Impedidos de voltar à vida, não têm lugar em cidades interditadas. São espectros que assustam cidadãos de bem. Assolam bem nutridos. Constrangem o marketing político. Desmentem estatíticas de governos, indicadores economicos e o choque de gestão em Minas Gerais. Consumidos pelo frio da noite, pelo alcool, pela indigência, pela falta de emprego, pelo trabalho precário, inserem-se no rol de palimpsestos. Apagam-se e não são contabilizados. São como crianças e adolescentes, palimpsestos menores, que só contam em orçamentos e políticas públicas, dos direitos que têm direitos quando são intencionalmente criminalizados. Palimpsestos humanos são subprodutos desta máquina que nos tritura. Da desqualificação criativa que subverte a educação e degrada nossa consciência. É fruto do capital intelectual de governos, parlamentares e juizes bandidos que transformaram a educação e a sociabilidade em riscos de vida. Em perigo eminente. Devendo ser debelada pelo estíimulo à ganância, ao empreendedorismo, à competitividade e ao indivualismo. Sob pena de emancipar direitos que retiram privilégios. Zumbis criminalizados, não podem voltar à vida, mas como palimpsestos humanos também não podem ser apagados. Assombram homens de bem e irrompem no imaginário juvenil. Destituidos de tudo, resistem como podem, assim menores infratores. Denunciam com seu sofrimento e carências a falta de direito à vida nas cidades interditadas. * Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição Data: 10/07/2015 |