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Artigo - Uma escola de portas abertas para o mundo

Wagner Braga Batista*

 

Há muito tempo não víamos  filme tão denso e comovente.

 

“Uma escola em Havana”, ( Conducta, Cuba, 2014) dirigido por Ernesto Daranas fala-nos dos limites da educação num país paralisado pelo bloqueio econômico. Confronta práticas educativas com relações sociais efetivas. Esgarça condutas reais, que precedem o ingresso de jovens nas salas de aula e os aguardam na porta de saída das escolas, em sua volta às ruas. A narrativa, ao mesmo tempo em que valoriza a ação pedagógica, desmistifica a educação. Propõe uma leitura realista e contundente do seu entorno, que, em última instância, condiciona desempenhos escolares. Leva-nos a crer que escola não é redoma protetora que imuniza agentes pedagógicos e estudantes contra o contágio social.

 

Há muitas remissões subjacentes no filme. Implicitamente, remete-nos a teorias e ações pedagógicas. À vivência do soviético Anton Makarenko (1988-1939) em proficiente e poético trabalho com órfãos e menores infratores na colônia Gorki, em condições de extrema carência, durante a guerra civil soviética. Fala-nos de horizontes ensejados pela educação como fontes de vida.  Conduz-nos às evidentes influências de nosso conterrâneo Paulo Freire (1921-1997) no sistema  educacional cubano. Na educação para a autonomia.

 

A refinada narrativa utiliza-se de vasto repertório cinematográfico. Recorre a  Serguei Soloviev, “ A pomba branca” ( URSS, 1986), ao inglês “Kes” (Ken Loach, 1968), à selvageria das rinhas de “Amores brutos” ( Amores perros, 2000) do mexicano Alejandro González Iñárritu, entre tantas outras referencias.

 

Tendo como cenário a área mais decadente e pobre da velha Havana, o filme retrata a  coexistência dos quase inviáveis personagens, que subsistem a graças a compromissos sedimentados na aspereza do cotidiano. Este é o pano de fundo das indagações trazidas pela educação, pelas contradições emanadas de diversos protagonismos em meio à cáustica realidade social. Projetadas na supervisora sensível, porém refém da burocracia. Na santeria da  insurgente diretora da escola laica. Na professora novata que transita da pedagogia autoritária para a autoridade pedagógica, consubstanciada no crescente afeto pelos seus educandos. No coordenador de escola correcional que revigora estigmas de seu passado para fortalecer laços de identidade com crianças marginalizadas.

 

A narrativa utiliza-se destes personagens para apresentar desafios da educação numa realidade extremamente inóspita. De padrões educacionais reconhecidos mundialmente. Convém salientar. Cuba, apesar de suas enormes carências é o país das América Latina e Caribe que apresenta melhores indicadores educacionais. Segundo o Banco Mundial (2014) , o único sistema escolar latino-americano que atinge parâmetros mundiais. Em Cuba não há criança fora da escola e toda a população em idade escolar é alfabetizada. Apesar das carências, Relatório das Nações Unidas (2014) assinala que Cuba é o segundo país  com maior grau de desenvolvimento humano na América Latina (abaixo apenas do Chile).

 Em recente entrevista ao Estadão (08 de setembro de 2015), Daranas assinala que os ideais de Carmela, a proficiente e engajada professora, interpretada por Alina Rodrigues, tradicional atriz cubana, falecida semana retrasada,  constituem a projeção desejável do sistema social em Cuba. Ou seja, a convivência harmoniosa, por meio da qual diferentes se reconheçam em meio à equidade.

 

A corrupção, as prisões, a prostituição, o uso de drogas, o jogo clandestino, as rinhas de animais, compõem um elenco de aspectos críticos, que expõem universo complexo, pouco conhecido, que se desvela com o abrandamento da censura em Cuba.

 

Apesar das contundentes críticas  ao regime político e à burocracia, o diretor não hesita em denunciar o bloqueio econômico imposto à Cuba, por mais de meio século,  como grande responsável pela deterioração da sociedade, das instituições, das famílias e das conquistas do socialismo.

 

O filme não nos oferece soluções definitivas. Deixa-nos indagações sobre os destinos dos personagens e da educação. Remete-nos à constante instabilidade, marcante nas relações entre os personagens. A narrativa tensa sugere o tênue equilíbrio da sociedade e da educação cubana.

 

Os compromissos de educadores, que se efetivam em meio a tantas adversidades e privações, insanáveis nesta conjuntura, levam-nos a refletir sobre a universidade pública brasileira. Este universo ambíguo, que mescla discursos de boas intenções com práticas pedagógicas que os contraditam. Que está a exigir inadiável democrática, sistemática e criteriosa auto avaliação coletiva

 

Numa passagem do filme, Carmela, retruca o reducionismo dos que pretendem gerenciar a educação. Dos que a concebem pautada em matrizes, regras e conceitos pré-estabelecidos, que anulam suas virtualidades.  Fala da presunção da pedagogia que não reconhece seus limites. Incapaz de transformar condições de vida, que precedem e envolvem a escola, ilude-se com a presunção de que possa encapsular a vida humana em regimentos e na própria escola.

 

Carmela enfrenta o dilema de todos educadores no trato com a dinâmica agressiva da realidade. Assevera: antes sentíamo-nos confiantes no que ensinávamos, hoje, hesitamos ante o que dizer aos nossos alunos.

 

Seu repto é interminável.. Sua luta para impedir que seus alunos sejam criminalizados por seus atos mexe com nossas feridas. Interpela professores que defendem a imputabilidade de jovens. Denuncia esta postura como atestado de incompetência de educadores e da escola, que deveriam lhes oferecer alternativas para que não se tornassem infratores.

 

A abnegada militância de Carmela não tem fim. Se esgotará, se suas pernas não tiverem mais forças para  subir as escadas que a levam conduzem às salas de aula. Para suas convicções, não há aposentadoria. Tampouco para a dinâmica e as potencialidades da educação.

 

Paulo Freire nos adverte. Desmistifica o caráter revolucionário da educação. Porém complementa.  A educação, por si só, não transforma o mundo, mas é indispensável em toda transformação social substantiva.

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição


Data: 14/09/2015