Artigo - O sorriso e o perdão Hiran de Melo* Chega um tempo na vida, nesta imensa e boa vida, que a gente sente uma compulsão para contar histórias. Uma realmente vivida, tal qual contada; outra, um tanto inventada a partir de fatos reais. O danado é distinguir uma da outra, embora tão presentes no sentimento do vivido. No entanto, elas se encontram tão distante no tempo, neste instante. Por exemplo, lembro-me de um senhor bondoso, prestativo a qualquer instante, até mesmo quando dormindo, bastante para tanto acordá-lo. Morava sozinho em uma grande casa - um palácio gótico, tal qual uma grande gaiola a acolher uma águia. Apesar das asas de um grande pássaro, o senhor bondoso mais se parecia como uma sábia coruja. Pois a todos aqueles que o procuravam com problemas, receitava remédios que conduziam à cura. Particularmente, quando o problema era de ordem jurídica, o danado sabia mais do que o juiz. Embora advogado não fosse, posto que não vivia de ganho nenhum dessas pelejas jurídicas. Não à-toa, era tratado por todos como o Seu Rábula. E, tão conhecido assim o era, que quase ninguém mais sabia dizer o seu nome de batismo. O realismo mágico presente na história do Seu Rábula, apesar de toda generosidade gratuita que distribuía, consistia que ele não era amado por todos. Havia, por exemplo, um pseudopoderoso - conhecido por Seu Malvado - que o odiava e, portanto, resolvera gratuitamente, porque razão não haveria, construir uma armadilha, mediante um factóide, para destruir a reputação de generoso senhor. Ah! Não pense que era um factóide qualquer, do tipo que causa sensacionalismo e depois é esquecido, posto que é falso ou inacreditável. Este era da categoria de realismo mágico, mesmo, apresentando o inacreditável como algo cotidiano. E o enredo era mais do que simples. Consistia em espalhar dentro de uma conversa qualquer, mas reservada, a observação de que, como era do conhecimento do interlocutor, existia um fato que comprovava que o Seu Rábula não era tão santo assim. E, quem sabe, por debaixo daquela cabeleira preta não se escondiam tenebrosos chifres. Depois desta observação e de alguns risos, dando a impressão que era uma brincadeira, mudava rapidamente de assunto, deixando o interlocutor sem saber que danado de fato era esse, e sem a oportunidade de demonstrar a sua ignorância. Assim era a arte do Seu Malvado, emérito construtor de factóide: apresentava um adjetivo a respeito do desafeto, mas escondia o substantivo. Escondia, pois não haveria como revelar o que não existia. Agora, não pense que é só isso que me vem a memória. O mais admirável aconteceu foi quando, de tanto contar a história inventada, Seu Malvado ficou convencido de que a mesma era verdadeira. E, munidos dos melhores propósitos, foi contá-la ao próprio Seu Rábula! Este sorriu e lhe perdoou. * Hiran de Melo é professor da UFCG As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição Data: 28/10/2015 |