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Artigo - A barbárie nossa de cada dia

Luciano Mendonça de Lima*

 

No dia 28 de março de 1968 a polícia do Rio de Janeiro matou, com um tiro à queima roupa, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, no interior do Calabouço, uma espécie de Bandejão também frequentado por universitários localizado no centro da cidade, por ocasião de um protesto contra o aumento do preço da refeição. O enterro foi acompanhado por uma multidão de mais de 50 mil pessoas.

 

Dentre as muitas faixas empunhadas pelos participantes uma em especial chamava a atenção: “Mataram um estudante. Podia ser seu filho”. Nos dias seguintes novas manifestações de protesto foram realizadas em diversas cidades brasileiras, inclusive Campina Grande, para reverenciar a memória do estudante paraense de 18 anos de idade. Além da comoção popular que gerou, a tragédia juvenil inspirou a canção “Menino”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, que dentre outros belos e cortantes versos, dizia o seguinte: “Quem cala morre contigo, mais morto que estás agora”.

 

O episódio do assassinato de Edson Luís funcionou como uma espécie de catalisador das insatisfações em curso de diversos setores da sociedade brasileira contra a ditadura militar (instalada no Brasil com o golpe de 1º de abril de 1964), culminando na famosa passeata dos 100 mil no dia 26 de junho daquele ano. Embora não tenha derrubado a ditadura, os acontecimentos daquele memorável ano contribuíram para abalar momentaneamente as bases do sistema.

 

No último dia 29 de novembro a polícia militar do Rio de Janeiro voltou a protagonizar mais uma tragédia envolvendo jovens. Desta vez ela executou, com 111 tiros de pistola e fuzil, os irmãos Wesley Castro, de 20 anos, e Wilton Esteves Domingos Junior, também de 20 anos, que estavam com os amigos Cleiton Corrêa de Souza, de 18 anos, Carlos Eduardo da Silva Souza, de 16, e Roberto de Souza Penha, também com 16 anos, moradores da favela da Lagartixa, localizada no Complexo da Pedreira, em Costa Barros, Zona Norte da cidade. (1) O cerimonial fúnebre contou com a presença de poucas pessoas, entre elas parentes e amigos mais próximos residentes na comunidade. No cemitério em que os jovens foram enterrados, alguém trazia uma faixa com os seguintes dizeres: “A Síria é aqui”, uma clara analogia da situação de violência endêmica que impera principalmente nos subúrbios brasileiros com a guerra civil que atualmente assola aquele país do Oriente Médio. Na semana seguinte, por duas vezes, tentou-se realizar manifestações públicas de protesto contra a carnificina.Apesar dos apelos desesperadores da família, poucos foram os que compareceram. Nem os poetas populares se deixaram comover pelo drama das mães das vítimas, que tal qual Zuzu Angel (mãe de Stuart Angel, outro jovem assassinado e “desaparecido” pelo regime militar e cuja história serviu de mote para a belíssima canção “Angélica”, de Chico Buarque e Miltinho) só queriam “lembrar o tormento” que fez os seus filhos suspirarem para sempre.

 

Como foi possível que, em plena ditadura militar, a morte de um jovem causasse tanta comoção e em tempos aparentemente “democráticos” a execução fria e brutal de cinco jovens não indignasse mais do que os familiares e alguns poucos amigos? Estes dois acontecimentos, apesar separados no tempo por um intervalo de 47 anos, muito nos dizem sobre o Brasil e suas mazelas passadas e presentes.

 

Convém lembrar, a propósito, que Edson Luís não foi o único jovem que morreu assassinado pela polícia no Brasil em 1968. Naquele mesmo ano centenas de jovens das periferias das grandes cidades brasileiras foram assassinados com requintes de crueldades pelos Esquadrões da Morte (que, não nos esqueçamos, eram constituídos majoritariamente por agentes do aparelho repressor da ditadura militar com atuação em vários Estadosda federação, incluso a Paraíba) sendo o mais famoso deles comandado pelo famigerado delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que também haveria de desempenhar o papel de algoz de boa parte da oposição política ao regime, especialmente daquele setor mais radical da esquerda que ousou pegar em armas para derrubar a sanguinolenta ditadura a serviço do grande capital.

 

As vítimas preferenciais dos Esquadrões da Morte eram (e ainda são) os setores mais fragilizados da sociedade, pobres e negros, fruto do crescimento urbano desordenado promovido pela nova fase do capitalismo inaugurada em 1964 no Brasil. Essas “classes perigosas” eram incapazes de criar uma rede de solidariedade ao seu redor, entregues que estavam à própria sorte. Ao contrário de outros segmentos da sociedade alvo da ação da ditadura, como os estudantes, que devido a sua condição social e capacidade de articulação política da época, foram capazes de catalisar para si o episódio da morte de Edson Luís, dando ampla repercussão ao caso, estes outros setores eram agraciados com o perverso slogan da ideologia oficial, abraçado acriticamente por parte da população, de que “bandido bom, é bandido morto”.

 

Como sabemos, a ditadura militar no Brasil acabou formalmente em 1985, resultado de um pacto costurado por cima entre setores dissidentes do regime com a oposição moderada, em que pese os esforços das mobilizações populares em curso desde meados da década anterior no sentido de ir além do horizonte conservador imposto pela burguesia brasileira e seus aliados internos e externos.

 

O resultado da “transição democrática” foi um pesado legado que ainda hoje se faz presente no cotidiano da maioria da população, tais como o caráter dependente do capitalismo brasileiro, o modelo concentrador de renda, as injustiças sociais e a violência contra as classes populares e suas organizações. Para ficar apenas nesse último aspecto da questão, lembremos a morte, promovido pelo Exército brasileiro, de três operários da Usina de Volta Redonda por ocasião da greve de 1988, o assassinato de diversas lideranças e trabalhadores rurais no campo, a chacina dos 111 presos do Carandiru, os massacres de trabalhadores sem terra de Eldorado dos Carajás e de Corumbiara, os linchamentos, a continuação dos esquadrões da morte, agora travestidos com a nomenclatura de “grupos de justiceiros”, isso para não falar da tortura que campeia solta no sistema carcerário brasileiro.

 

Ao chegar ao poder em 2003, o Partido dos Trabalhadores (cuja história remonta as lutas de resistência contra a ditadura em meados dos anos 1970 e início dos 1980) não só não rompeu com esse estado de coisas, como se curvou às forças do grande capital, que, como sabemos, precisam do uso sistemático da violência para manter a ordem social. Além de ter mantido a impunidade dos assassinos do passado ditatorial (a exemplo do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que morreu recentemente sem nunca ter sentado no banco dos réus para responder por crimes de lesa humanidade quando comandante do II DOI-CODI) os governos petistas de Lula, Dilma (2)e seus novos e velhos aliados de plantão contribuíram para aperfeiçoar ainda mais essa verdadeira máquina de triturar gente trabalhadora que é o estado burguês, especialmente o seu braço armado representado pelas forças armadas e as polícias militares.

 

Não é à toa que foi nesse período recente de nossa história que as Unidades de Polícias Pacificadoras foram criadas. Como se sabe, as UPP começaram a ser gestadas em 2004, no Haiti, a partir de uma aliança de esforços do Exército brasileiro com assistência militar do governo norte-americano. Como já havia ocorrido em 1964 com outros fins, os dois governos juntaram esforços desta vez para ocupar aquela ilha do Caribe e reprimir a luta do povo que em 1804 protagonizou a única revolução negra que destruiu o poder senhorial colonialista das Américas e que por isso mesmo nunca foi perdoado pelos escravistas de ontem e seus herdeiros imperialistas de hoje.

 

Algum tempo depois as UPP retornaram ao Brasil, sob o pretexto de combater o tráfico de drogas nos morros e favelas cariocas. Convém destacar que nesse último período o Brasil vem passando por um verdadeiro boom imobiliário, o que tem implicado no reordenamento dos espaços das cidades brasileiras de acordo com os interesses do capital, o que tem contribuído para agudizar ainda mais as tensões sociais. Embora não esteja presente fisicamente em todas as cidades brasileiras, com seu símbolo maior, os tanques blindados alcunhados de “Caveirões” (importados do Estado de Israel, uma das maiores máquinas de guerra do mundo que diariamente humilha, tortura e mata milhares de palestinos em verdadeiros campos de concentração modernos, como a Faixa de Gaza) a filosofia das UPP é que atualmente dá o tom da política de (in) segurança pública hegemônica no Brasil. Nesse sentido, o inimigo interno não é mais apenas o potencial subversivo de esquerda, mas principalmente os pobres e pretos, vítimas preferenciais da verdadeira guerra civil que se trava a cada dia nesse país. Essa verdadeira “limpeza social e racial” conta com a participação ativa de tradicionais setores conservadores da sociedade brasileira e tem a cumplicidade de forças políticas que tiveram um papel progressista até um passado recente.(3)

 

É por essas e outras que chacinas como a que vitimou os cinco jovens no subúrbio do Rio de Janeiro em 29 de novembro de 2015 são cada vez mais recorrentes. Infelizmente ela não foi a primeira e nem será a última.(4) Contudo, ao contrário dos diferentes governos, da indústria bélica, da mídia sensacionalista e de alas conservadoras e reacionárias da sociedade civil, não devemos naturalizar e banalizar tais mortes. É preciso reagir com urgência e à altura da barbárie que tem caracterizado cada vez mais o nosso dia a dia. A solidariedade às vítimas e familiares é um passo importante. Em curto prazo, é preciso que alguma forma de justiça seja feita, que os familiares sejam reparados, material e moralmente, por parte do Estado. Porém isso não é suficiente. É preciso transformar a indignação em ação política coletiva capaz de identificar as raízes mais profundas do mal, ou seja, a lógica do capital que transforma a vida humana em mercadoria. Só assim os trabalhadores e o povo pobre do Brasil podem pensar em construir outra forma de organização social para além da violência, da exploração e da opressão do mundo burguês.

 

Notas 

(1) Como é praxe nestas situações, os policiais tentaram montar uma fraude processual, ao colocarem uma arma no local para passar a idéia de que antes de agir foram agredidos pelos jovens e assim justificar a ação criminosa como um ato de legítima defesa. A farsa foi desmontada pela perícia, que comprovou o óbvio ululante: tratou-se de mais uma covarde execução de vítimas indefesas. É por essas e outras que a polícia brasileira é a que mais mata no mundo, lado a lado com a americana. Segundo dados divulgados recentemente pela Anistia Internacional, 17% dos 56 mil homicídios registrados no Brasil em 2012 foram cometidos por policiais. Destes, 80% são jovens pobres e negros, o que se encaixa no perfil dos cinco rapazes de Costa Barros, números esses que apontam para um verdadeiro genocídio com claro perfil de classe e raça. Com a atual crise econômica esse quadro catastrófico só fez se acentuar.

 

(2) Quando da morte de Edson Luís a hoje presidente da República Dilma Rousseff era uma jovem de pouco mais de 20 anos.  Quando chegou ao Rio de Janeiro em 1968, proveniente de Belo Horizonte, era militante do Comando de Libertação Nacional, uma das várias organizações de esquerda que atuavam no movimento estudantil. Algum tempo depois rompeu com a organização e se transferiu para a Vanguarda Popular Revolucionária-Palmares, quando foi presa e torturada em 1970, acusada pelos militares de terrorista por aderir à guerrilha urbana. Por uma ironia da história seu governo ficará marcado, dentre outros aspectos nefastos, como aquele que criou um dispositivo (a chamada Lei Antiterror) que criminaliza os movimentos sociais e chancela a repressão brutal aos lutadores do povo em suas lutas por direito, como, aliás, ocorreu durante a Copa do Mundo do ano passado e continua a acontecer nos dias que correm.  

 

(3) A história do ajudante de pedreiro Amarildo exemplifica bem o modus operandi da polícia brasileira. Amarildo foi preso em 14 de julho de 2013, no contexto das jornadas populares no Brasil, que a exemplo das manifestações de 1968 em relação à ditadura, momentaneamente abalaram o governo Dilma. Acusado de tráfico de drogas por policiais da UPP na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, acabou sendo barbaramente torturado até a morte, porém seu corpo encontra-se desaparecido desde então. Por outro lado, o ano passado, um moto-taxista, também acusado de traficante pela polícia militar da Paraíba, foi levado para um matagal próximo ao bairro de Monte Castelo, zona leste de Campina Grande, de onde populares escutaram barulhos de tiro. Desde então, a exemplo de Amarildo, se encontra desaparecido.  

 

(4) No dia 06 de julho de 2015, em um bairro popular de São Luís do Maranhão, o desempregado Cleydenilson Pereira da Silva, 29 anos, foi colocado em um poste e linchado até a morte sob o olhar indiferente de populares. A cena lembra, de forma perturbadora, as gravuras dos artistas Rugendas e Debret que remetem aos suplícios da escravidão na corte imperial brasileira do começo do século XIX. Logo em seguida, em agosto, tivemos a chacina de Barueri/Osasco, região metropolitana de São Paulo, quando policiais disfarçados mataram friamente 19 pessoas. A lista de horrores praticados pela polícia não tem fim, uma prova a mais de que essa carcomida instituição repressora não têm conserto nem nunca terá e, por conseguinte, deve ser simplesmente extinta.

 

*O autor é professor da Unidade Acadêmica de História da UFCG.

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição


Data: 09/12/2015