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Artigo - Dia Internacional da Mulher: origens da luta por igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres

Rosilene Dias Montenegro [1]

 

Homem, sabes ser justo? É uma mulher que te pergunta: não quererás tolher-lhe esse direito? Dize-me, quem te deu o soberano poder de oprimir o meu sexo? A tua força? As tuas capacidades? (Olympe Gouges, 1791)

 

Em 1791, em Paris, foi lançado ao público a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”[i], documento considerado o primeiro manifesto público de reivindicação da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Sua autora, a revolucionária Marie Gouze (1748-1793)[ii], intelectual francesa, dramaturga, ativista política, feminista e abolicionista francesa, cujo pseudônimo era Olympe Gouges. Seu manifesto em defesa de igualdade de direitos entre homens e mulheres fez ecoar a voz das mulheres em reprovação a ausência do reconhecimento da importância fundamental das mulheres na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Foi a reivindicação do respeito ao lugar insubstituível da mulher na construção de uma nova ordem social e política. 

 

A “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” constitui registro documental inquestionável da vanguarda feminina na reflexão radical, no sentido “ir à raiz” da questão: uma sociedade patriarcal que tem a oportunidade de se refazer se libertando do patriarcalismo e de todas as amarras que mantinham a diferença entre as pessoas e o desrespeito ao direito à igualdade dentro da diversidade,

 

As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, pedem para constituir-se em assembleia nacional. Considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos da mulher são as únicas causas das desventuras públicas e da corrosão dos governos, elas resolveram expor numa solene declaração os direitos naturais inalienáveis e sagrados da mulher, a fim de que essa declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lembre incessantemente os seus direitos e os seus deveres, a fim de que os atos do poder das mulheres e os do poder dos homens, podendo a todo instante ser confrontados com os fins de toda instituição política, sejam mais respeitados, a fim de que nos reclamos das cidadãs, baseados doravante em princípios simples e incontestáveis, sejam sempre voltados para a manutenção da Constituição, dos bons costumes e da felicidade de todos. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ, 1791).

 

A “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” reivindica a igualdade de direitos é apresentada em todos os seus aspectos, conforme descrito nos vinte e sete artigos, dos quais apresentamos os dois primeiros, a seguir:

Art. I
A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.

Art. II
O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis da mulher e do homem: esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ, 1791).

 

A “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, reivindica a igualdade de direitos em todos os níveis da dimensão social, política e econômica de uma Revolução que tem como lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, que mobilizou o imaginário e deu sentido às ações tomadas e levadas a cabo pela grande maioria da população francesa – pobres e miseráveis trabalhadores – influenciados pelo ideal de por fim a um regime de desigualdade e intensa exploração, e insuflados pela utopia de criar uma sociedade de liberdade, igualdade e fraternidade. Esses ideais que motivaram e justificaram o irromper da Revolução Francesa e seus desdobramentos, que deram à humanidade a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, não incluía a mulher. Não se propunha uma revolução completa, não quis ir à raiz da transformação. Era uma revolução feita com a esmagadora maioria da população – incluindo as mulheres nas lutas e defesa da transformação social a custa de suas próprias vidas – mas, para os homens no poder e com o poder. Mudava-se o regime, mas continuava o predomínio patriarcal. O artigo XVII da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” encerra o manifesto expondo interesses que a sociedade patriarcal, com o absoluto predomínio do poder masculino não estava disposta a rever:

 

Art. XVII

As propriedades são de todos os sexos juntos ou separados; para cada um deles elas têm um direito inviolável e sagrado; ninguém pode ser privado delas como verdadeiro patrimônio da natureza, a não ser quando a necessidade pública, legalmente constatada, o exija de modo evidente e com a condição de uma justa e preliminar indenização. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADÃ, 1791).

 

Marie Gouze foi presa em julho de 1793 e condenada a morte, tendo sido guilhotinada em 03/11/1793 por suas ideias políticas, sendo o manifesto “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” a justificativa pela sua condenação.

 

Cem anos após a Revolução Francesa, e também cem anos após a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, de Olympe Gouges (Marie Gouze), os intelectuais progressistas e da esquerda política no mundo reuniam-se para as discussões sobre as lutas políticas de combate a exploração capitalista e de organização dos trabalhadores em todo o mundo. As discussões versavam sobre a viabilidade ou não de uma revolução socialista. A II Internacional Socialista (1889-1916) pautou a questão da participação das mulheres na construção da nova ordem política, econômica e social. Tendo aprovado em 1891, a proposta do SPD (Partido Social Democrata Alemão) de um programa de direitos políticos para todos, independentemente de sexo, e a reivindicação de extinção das leis que discriminassem as mulheres[iii].

 

A criação de um dia internacional da mulher foi proposto por Clara Zetkin, dirigente do Partido Social Democrata Alemão, o SPD, por ocasião da 2ª Conferência da Mulher Socialista, em 1910, tendo como argumento a notícia de uma tragédia ocorrida com mulheres operárias nos Estados Unidos da América. Havia circulado a notícia de que em algum dia do mês de março de 1857, 130 operárias de uma fábrica de tecelagem, na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, teriam morrido num incêndio provocado pelos seus patrões. E foi devido a uma notícia falsa, que foi recepcionada sem a devida conferência de sua fonte e veracidade, que surgiu o mito de que Dia Internacional da Mulher foi criado em homenagem a essa ocorrência (que não se confirmou nas investigações sobre essa história)[iv]. Logo, o primeiro registro de uma proposta de criação do dia internacional da mulher data de 1910. De fato, uma tragédia aconteceria uma fábrica de tecelagem, na cidade de Nova Iorque, mas em março de 1911. Nessa tragédia, decorrente das péssimas condições de trabalho, 146 pessoas morreram num incêndio na fábrica em que trabalhavam. A maioria dos mortos era de operárias judias e italianas[v].

 

Nas últimas décadas várias pesquisas sobre esse tema têm confirmado que o acontecimento que efetivamente ensejou a criação do Dia Internacional da Mulher se deu em 08 de março de 1917, em São Petersburgo, na Rússia.

 

Em 08/03/1917 (23/02/1917 no calendário juliano, adotado na Rússia), cerca de 90 mil mulheres operárias fizeram uma forte manifestação contra o Czar Nicolau II. O protesto conhecido como “Paz e Pão”, reclamava das péssimas condições de trabalho, da fome e da participação da Rússia na guerra (Primeira Guerra Mundial 1914-1918). Essa data se consagrou como sendo o Dia Internacional da Mulher[vi], que foi reconhecido apenas em 1921. Destacando-se que esse movimento das operárias em protesto ao Czar Nicolau II deu início ao movimento que culminaria com a queda do Czar Nicolau II, membro da dinastia dos Romanóv, que dominava a Rússia havia três séculos ou seja 300 anos. As mulheres operárias não somente participaram do protesto que derrubou o Czar como também de todo o movimento que culminou na Revolução de fevereiro de 1917 e a Revolução Russa de outubro de 1917, quando o movimento se transforma em Revolução Socialista.

 

A História do Socialismo destaca merecidamente as intelectuais Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai, as mais conhecidas. Outras mulheres intelectuais ativistas políticas e revolucionárias como Nadezhda Konstantinovna Krupskaya, esposa do líder revolucionário Vladimir I. Lenin, Klavdia Nikolayeva e Konkordia Samoilova, Inessa Armand, Yevgenia Bosh, Anna Ilyinichna Yelizarova, Maria Ilyinichna Ulyanova[vii] são menos conhecidas, mas tiveram grande contribuição no movimento revolucionário. Mas a Revolução Russa não teria acontecido sem a participação de milhares de mulheres do campo e da cidade que participaram do movimento que pôs fim à Rússia czarista.

 

8 de março, Dia Internacional das Mulheres, foi criado portanto a partir das 90 mil operárias russas que deram início à Revolução Russa – um dos maiores e mais importantes acontecimentos do século XX. Revisão de uma história que a cada ano ganha a contribuição de novas pesquisas. O que não invalida ou torna menos importante ou crucial os acontecimentos que envolveram negação de direitos versus luta por direitos.  

 

Passados duzentos anos da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” e cem anos do primeiro 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o direito ao sufrágio universal – votar e ser votada, só começou a ser conquistado a partir do século XX. No Brasil em 1932. Foi também somente a partir do século XX, em 1945, que o princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres foi reconhecido a afirmado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

 

Os movimentos sociais de luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres eclodiram na década de 1960, por meio do movimento feminista. Em consequência desses movimentos houve a ampliação de conquista de direitos das mulheres, e a inserção da questão das mulheres na pauta política em vários países do mundo, particularmente no Ocidente. A história de lutas das mulheres pela igualdade de direitos, fortalecida pelo movimento feminista da década de sessenta, contribuiu para colocar “a questão das mulheres” na agenda internacional das discussões políticas representadas pela ONU. Decorrendo daí a instituição da “Década da Mulher”, de 1975 a 1985, e programas políticos para a igualdade de direitos que passam necessariamente pela igualdade de gêneros e empoderamento das mulheres.

 

O Dia Internacional da Mulher marca a história da humanidade. Houve conquistas importantes, todas elas decorrentes de organização, mobilização e lutas. Mas é preciso avançar no reconhecimento e implantação dessas conquistas. As mulheres conseguiram nos países do Ocidente o direito ao sufrágio universal - votar e ser votada – mas ainda são minorias nas representações políticas. Também constituem minoria nos cargos públicos de gestão. As mulheres conquistaram o direito ao trabalho, mas continuam recebendo salários menores do que o pago aos homens, e sendo desrespeitadas em seu direito à diversidade. As mulheres conquistaram o direito de estudar nas instituições educacionais de todos os níveis de instrução, mas continuam tendo dificuldades – muitas vezes discriminadas – em áreas que culturalmente têm o predomínio dos homens. As mulheres têm avançado na conquista de direitos sobre seu próprio corpo, mas continuam vítimas de preconceitos e, principalmente, de violência.  Os dados sobre a violência contra a mulher no mundo e no Brasil são estarrecedores, transformando o Dia Internacional da Mulher em dia internacional de combate a violência contra as mulheres.

 

Logo, as 90 mil operárias russas, da revolução de fevereiro de 1917, representam cada uma das mulheres que fizeram parte das conquistas obtidas desde o primeiro manifesto de reinvindicação de igualdade de direitos. Representam as 146 pessoas mortas num incêndio em 29/03/1911, em uma fábrica também na cidade de Nova Iorque, grande a maioria de mortos eram operárias imigrantes judias e italianas. Representam, sobretudo, cada um das mulheres trabalhadoras em todo o mundo. Representam a possibilidade de utopia da Liberdade, Igualdade e Fraternidade e o sonho de um mundo menos injusto e menos desigual, o sonho de um mundo com inclusão e respeito à diversidade.

 

Passados duzentos anos da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” (1791), cem anos da Revolução Russa, meio século dos movimentos sociais feministas que abalaram a cultura ocidental (anos 1960), quarenta anos da “Década da Mulher” (1975-1985), as mulheres continuam sendo vítimas de preconceitos, discriminação e violência.

 

A ampliação dos direitos de gênero e o do empoderamento das mulheres constitui conquista de toda humanidade porque significa a ampliação da liberdade, igualdade e fraternidade. Um mundo menos injusto, menos violento e, portanto, mais livre, igual e fraterno passa necessariamente pela conquista definitiva da igualdade de gêneros e o empoderamento das mulheres. Viva o 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres. Avante!

 



[ii] Para fins de primeiras informações sobre Marie Gouze, pseudônimo Olympe Gouges, ver wikipedia, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Olympe_de_Gouges Acesso em 07/03/2017.

[v] Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8643. Acesso em 06/03/2017.


Data: 08/03/2017