topo_cabecalho
Artigo - Onde estará Florêncio?

Wagner Braga Batista*

 

Nos anos 1990, disseminou-se pelas bancas de revistas e livrarias um passatempo. A publicação intitulada “Onde está Wally” instigava a procura do personagem central em gravuras bastante diversificadas e detalhadas. Wally estava lá, com certeza, o desafio era localizá-lo.

 

Em paralelo, no campus II, da UFPB, e posteriormente na UFCG ganhava corpo fenômeno inverso. No ambiente acadêmico, personagens desapareciam de cena. De nada adiantava procurá-los. Integravam-se ao vazio físico e crítico que desumanizava a universidade pública.

 

O embrutecedor passatempo realizado no meio acadêmico, exigia alta dose cumplicidade, posto que  personagens ausentes tinham plena consciência de que não seriam localizados, sem nenhuma implicação. Era parte do jogo.

 

No campus I vivencia-se o mito do Triangulo das Bermudas. Professores desapareciam a caminho das salas de aula sem deixar vestígios.

 

Neste contexto, com enorme satisfação conheci um servidor atípico, posto que era invariavelmente encontrado: Florêncio. Assim como o jardineiro Josafá, o Hercules de 50 kg, possuía aptidões incomuns. A mais significativa: a capacidade da onipresença.

 

Com o passar dos anos, por meio de profícua convivência enriqueci meu imaginário graças a suas modestas e corriqueiras atitudes. Sem hesitar, posso dizer que se tornou um ícone do compromisso de um servidor com a universidade pública.

 

Num ambiente de restauração liberal, de privatização miúda e graúda do patrimônio público, de sucateamento da universidade, os Florêncios, servidores docentes e técnico-administrativos, a duras penas impediram que a UFPB evaporasse. Não mediram esforços desempenhando-se como autênticos servidores públicos.

 

Com o advento da UFCG, o abnegado Florêncio tornou-se uma anomalia. Um transtorno institucional. Transitando por inúmeros Estatutos, Regimentos, princípios normativos, egrégios conselhos e tantas outras ficções, a moderníssima UFCG viu-se na contingência de inventar uma nova e antiquada cosmogonia.

 

Florêncio tinha que ser regulamentado, posto que não era Deus, mas no exercício de suas funções possuía o dom da ubiquidade. Estava em todos lugares ao mesmo tempo. Estava onde precisassem dele. Simplesmente, cumprindo seu papel de servidor público.

 

Enquanto em paredes de repartições proliferavam avisos e advertências que criminalizavam o público merecedor da atenção de servidores relapsos (Artigo 331 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940) Florêncio, sem ser adepto de Che Guevara, seguia à risca sua máxima: É preciso atender sem perder a ternura jamais.

 

Na contramão da indiferença e do desleixo de alguns servidores, Florêncio convertia-se num baluarte da valorização do serviço público sob constante ameaças de governos liberais. Seu comprometimento contrapunha –se as artimanhas que desqualificavam o serviço público para promover a escalada privatizante.

 

Os Florêncios e suas atitudes inquestionáveis punham por terra o engodo da ineficácia do serviço público, colocavam-se como escudos frente a devastadora voragem ultraliberal que arrebatava a preço de banana patrimônio público depreciado ardilosamente por estratégias privatizantes. Sem alvoroço, doutrinarismo e falsos propósitos, os Florêncios tornaram-se esteio de resistência nuclear, da valorização do serviço público, apostando no futuro sem renunciar ao compromisso com presente da universidade pública. Sem perder a ternura, jamais.

 

Militantes da generosidade, das boas intenções e de indispensáveis ações não disputavam espaços de poder, pedestais e vitrines para seu usufruto.

 

Apesar do inegável desprendimento, Florêncio buliu com vaidades, gerou estranhezas, inquietudes, mal estares, inveja, hostilidades e desafetos. Como de praxe em ambientes licenciosos, incompreensíveis reações não requerem legitimidade para se manifestar. No paraíso das alegorias, tudo é possível.

 

Costeletas podem se dizer indignadas, bureaux ser guindados a cargos comissionados, escaninhos tornarem-se pesquisadores eméritos, portas andar em corredores, entre tantas bizarrices. Fatos desta natureza não causam remorsos ou consequências mais graves em instituição pública combalida.

 

Daí, ociosos carimbos de protocolo sentem-se no direito de sancionar o certo e errado, bem como a iconografia do clientelismo e do retrocesso pode se apresentar como bandeira da moralidade. Em meio a alegoria abrem-se gavetas no almoxarifado, brotam zumbis de diários de classe, nuvens de bolor infestam salas de aula e em meio a falta de nexo selos, estampilhas, clipes, grampos e papéis timbrados também podem exercer algum protagonismo. Sem nenhuma responsabilidade, podem nutrir o ócio e a defender sem nenhum sentimento de culpa que Florêncio é dispensável. Urdida a trama, onde estará Florêncio?

 

Pois bem, esta noite, no devaneio, imaginei Florêncio subindo ao céu.

 

Em sua chegada, como não podia deixar de ser, acolhido efusivamente, festejado pelas almas boas, não se furtou a falar de seus exaustivos processos pendentes, a sanar antigas dúvidas e mitigar a ansiedade coletiva. Esta sempre foi sua rotina. Apreensivas, as almas boas indagavam sobre o colapso da educação pública. Perguntavam pelo desmonte da Previdência, provocado pela sonegação, pela renúncia fiscal em prol de grandes grupos econômicos, pela transferência lesiva de recursos para o pagamento da dívida e pelos direitos trabalhistas arrastados para o brejo. O que restaria para futuras gerações diante desta hedionda sanha em curso ? O que autoriza agenda política, ilegítima e inescrupulosa, que sacramenta privilégios e desfaz direitos ?

 

Florêncio, diligente, escutava e a tudo respondia.

 

Almas boas preocupavam-se com seus descentes que teriam que pagar por este descalabro.

Aliás, bom que se diga, Florêncio percebeu que não tratava com almas boas como indica a literatura cosmogônica especializada. Não eram almas, nem anjos. Protagonistas antropomórficos, guardavam no íntimo a essência da humanidade, mãos e sentimentos. Por isto tinham calos, dores e emoções calorosas. Tinham fome e desejos. Dividam entre si apreensões e anseios. Trabalhavam para suprir necessidades e se sentiam gratificados atendendo demandas dos seus próximos. Sem temeridade, Florêncio se deu conta que poderia chamá-los de servidores. Familiarizado, sentiu-se em casa.

 

Após botar a conversa em dia, Florêncio seguiu caminho. Seu destino, o primeiro escalão do céu.

Tomou ciência, como dizem as escrituras, todos tinham sido eleitos. Não pela remissão de pecados, mas pelo voto em urna. Com programas cristalinos, meticuloso planejamento de cada ação, orçamentos precisos, comunicação direta com seus eleitores sem mediações mentirosas do marketing, financiamento de campanha e manipulação do voto. Na atual conjuntura, Divino, fora escolhido o mais elevado mandatário, porém não modificara suas rotinas. Reproduzia no cotidiano celeste seu comportamento habitual e a jornada de trabalho comum a todos seus pares. Solícito, compartilhava decisões com humildes e repelia presumidos notáveis. Dispensada a democracia representativa todos se viam como representantes de si e de todos. Portanto, não havia lugar para expedientes lesivos, resquícios de ambições pessoais, corrupção de qualquer natureza, triviais mesquinharias e penosas escadas, digressões do poder sacrificam nossas existências, humores e joelhos.

Abolidos aparatos simbólicos, o céu podia ser facilmente apreendido. Porém restava uma dúvida: Qual o ritual e a porta de acesso ao Divino? Florêncio surpreendeu-se com a resposta.

 

Neste reino horizontal não havia liturgias e barreiras. Inexistiam portas, dificuldades de acesso, recepcionistas, senhas, agendas, protocolos, além de costumeiros baba ovos de ofício.

 

O Sua Excelência local, declinara de assim ser chamado, atendia pelo nome de batismo e assim tratava indistintamente a todos. Como Francisco, nosso papa de estimação, caminhava descalço, despido de adornos, comendas e roteiro.

 

Desde que se tornara gestor daquela fração do universo, tinha um único propósito ou motivação: administrar a felicidade coletiva. Sabedor de que, uma vez felizes, sem ranços, discriminações, sem relações assimétricas, todos se sentem iguais e são igualmente tratados, dedicava-se a superar desigualdades e desequilíbrios celestiais.

 

Atônito, Florêncio, que dedicara sua vida a seu mister, imaginava o céu como projeção do serviço público ideal.

 

Ainda divagava quando alguém pronunciou seu nome. Com a intimidade de velhos amigos, o Divino se acercou:

 

- Companheiro Florêncio.

Sem rodeios, de pronto, indagou:

- O que você veio fazer aqui no céu?

Sem entender o questionamento, sentiu-se bruscamente escanteado. Prenhe de dúvidas, pensou consigo mesmo: Será que não sou merecedor deste benefício ? A contrarreforma do Vampiro do Jaburu estaria chegando ao céu? Acaso não fui reconhecido como alma boa?

 

Caros leitores, como todos sabem, o Divino é capaz de ler pensamentos, portanto retrucou de imediato:

- Boníssima, boníssima companheiro Florêncio. Você é muito mais do que uma alma boa. Você é imprescindível. Por isto mesmo não pode ficar no céu.

 

Incisivo, finalizou:

- Seu lugar é outro. Onde todos reconhecem e necessitam de sua atenção. Sabem o muito que você fez e tem por fazer. Volta pro seu lugar.

 

Concluiu:

- Nestes tempos sombrios, a defesa de instituições públicas torna indispensável gente como você.

Assim, a saga de Florêncio recomeça. Mas, onde estará o Florêncio que está em todos lugares?

Sentimentalmente, sabemos onde encontrá-lo, posto que continua presente em nossa memória, nossa consciência e no nosso coração.

 

Porém é preciso resgatar Florêncio e tantos outros Florêncios que aí estão para que a universidade e o serviço público cumpram seu verdadeiro papel.

 

* Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição


Data: 31/05/2017