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Artigo - Estádio Presidente Vargas: patrimônio histórico, futebolístico e sentimental de Campina Grande

Luciano Mendonça de Lima*

                                                                                          

Parábola do homem comum

Roçando o céu

Um

Senhor chapéu

Para delírio das gerais

No coliseu

(O Futebol, Chico Buarque de Holanda)

                                                    

O futebol não é apenas um jogo, uma prática esportiva. Como tudo que diz respeito aos homens, ele é um produto histórico da sociedade que o viu nascer e se desenvolver. Para além dos 22 jogadores e a bola, devemos estar atento ao seu entorno econômico, social, político, cultural etc e suas múltiplas e contraditórias interações no tempo e no espaço.

 

Surgido na Inglaterra, com o tempo o mesmo foi se espalhando pelos quatro cantos do mundo. No Brasil o esporte bretão chegou no final do século XIX, junto com a ferrovias e demais produtos e valores burgueses da então pátria mãe do capitalismo. Na Paraíba o futebol chegou em 1908, na então Cidade da Paraíba, se espalhando nos anos seguintes pelas demais cidades do interior do Estado, dentre elas se destaca Campina Grande, município situado no Agreste da Borborema. Segundo boa parte da historiografia local, foi através das mãos (ou dos pés) do jovem Antônio Fernandes Bióca que o futebol chegou por estas plagas, quando no dia 24 de junho de 1913 foi realizada a primeira partida de futebol que se tem notícia na cidade. A história de Bióca ficaria definitivamente associada ao futebol e, portanto, aos anais dos desportos locais, quando, juntamente com 12 outros boleiros, fundou o Treze Futebol Clube no dia 07 de setembro de 1925, que juntamente com o Campinense Clube, criado enquanto Clube Social em 1915, haveria de no futuro protagonizar uma das maiores rivalidades futebolísticas regionais.

 

Inicialmente praticado em ruas e terrenos baldios do centro e arredores da cidade, com o tempo o futebol em Campina Grande foi deixando de ser visto apenas como uma prática de lazer desinteressada daqueles jovens, alguns bem nascidos outros nem tanto, como que a expressar as clivagens de classe na gênese do novo esporte em âmbito local. Com isso foi ganhando certa importância e chamando a atenção de outros setores da sociedade e do poder público, visando impor uma certa “ordem” a um fenômeno, aparentemente, caótico. Em função disso, por exemplo, determinados espaços físicos foram sendo criados com o fim de servirem de palco para a realização do novo esporte, dando início assim a construção dos primeiros Estádios de futebol local. 

 

É nesse contexto que surge um dos mais tradicionais Estádios de futebol local, o Presidente Vargas.  O PV, como ainda hoje é popularmente conhecido, foi inaugurado no dia 17 de março de 1940, em jogo envolvendo Treze Futebol Clube X Ypiranga Esporte Clube, que acabou empatado em 3x3.

 

Naquele tempo Campina Grande contava com uma população de pouco mais de cem mil habitantes, espalhada pelo núcleo urbano e pelos distritos rurais. O município vivia então o auge da economia algodoeira, que se fazia a “festa” das classes dominantes locais, por outro lado gerava miséria, dor e sofrimento para a grande maioria da população trabalhadora e do povo pobre. Foi justamente a riqueza gerada pelo “febre” do algodão que financiou o projeto de reforma urbana que a cidade sofreu entre as décadas nas décadas de 1930/1940, quando a elite local pôs abaixo a antiga cidade de traços ainda neocoloniais e sobre seus escombros ergueu uma nova cidade moderna, mais condizentes com seus valores, símbolos e interesses de classe.

 

Também conhecida como “bota abaixo” local, a intervenção urbanística atingiu seu apogeu na gestão autoritária do prefeito Vergniaud Borborema Wanderley e tinha como objetivo principal tornar Campina Grande uma espécie de “cartão postal”, no sentido de torná-la mais aprazível para suas elites e para aqueles “forasteiros” que a procuravam para fechar negócios, principalmente em torno do chamado “ouro branco”. Daí a necessidade de se criar uma nova estrutura para atender as novas necessidades geradas pelas transformações históricas, materializada na abertura de largas avenidas, praças públicas, residências particulares, prédios administrativos e espaços de diversão. Inicialmente circunscrita a algumas artérias centrais, o escopo espacial da reforma foi se alastrando para algumas áreas suburbanas da cidade, a exemplo do hoje tradicional bairro do São José, que foi agraciado com o Cinema São José, a Igreja de Nossa Senhora da Guia e o Hospital Alcides Carneiro.

 

Foi justamente nesse último bairro que o Estádio Presidente Vargas foi construído. O que inicialmente era apenas um terreno baldio, doado em 1938 em regime de Comodato por Argemiro de Figueiredo, então interventor da Paraíba e representante das oligarquias algodoeiras locais, indicado pelo ditador Getúlio Vargas, foi adquirindo características de um verdadeiro Estádio de futebol. Porém, no início nem tudo era flores. Havia, literalmente, uma pedra no meio do caminho do Galo da Borborema. Nesse sentido, o primeiro grande desafio foi remover uma enorme pedra que havia dentro do terreno, ação para a qual a população foi convocada a colaborar com doações, por exemplo, de explosivos e matérias de construção. Depois da remoção da pedra o campo de futebol propriamente dito, o quadrilátero de chão batido e depois gramado, foi sendo delineado. Logo depois os primeiros lances de arquibancadas foram erguidos, em seguida os refletores foram instalados e inaugurados em grande estilo em 09/07/1958. Com sua estrutura básica erguida o PV foi adquirindo melhoramentos materiais ao longo do tempo, ganhando assim o formato que o caracteriza hoje. Em todos estes momentos, a sua imensa torcida sempre esteve presente e continua a desempenhar papel importante. Convém destacar que os traços arquitetônicos originais do Estádio Presidente Vargas (a exemplo das áreas centrais reformadas da cidade como um todo) foram inspirados no chamado art décor, estilo esse importado da França e adaptado às características regionais do contexto histórico local.

 

Ao longo de seus 77 anos de existência o Estádio Presidente Vargas testemunhou importantes conquistas da história de Campina Grande, em especial de sua importante página futebolística, uma das marcas identitárias da cidade até hoje. Foi no PV que se desenrolou a maioria das partidas do memorável campeonato paraibano de 1966, conquistado de forma invicta pelo Treze Futebol Clube, a conquista do tri campeonato de 1981, 1982 e 1983, feitos estes nunca mais alcançados pelo Galo da Borborema. Grandes times do futebol brasileiro por lá se apresentaram, como Vasco da Gama, Botafogo e Flamengo, todos do Rio de Janeiro. Além da “prata da casa”, como “Pedro Neguinho”, “Bola Sete” “Josa” e Adelino, outros grandes artistas da bola que encantaram o Brasil e o mundo deixaram suas marcas por lá, a exemplo de Garrincha e Nilton Santos.

 

Até 1975, quando foi inaugurado (em plena ditadura militar e seu desejo de transformar o futebol em instrumento de propaganda política) o Estádio Ernani Sátiro, de propriedade do governo do Estado, o Presidente Vargas reinou quase que de forma absoluta no futebol de Campina Grande. A concorrência desigual do Amigão (como popularmente ficou conhecido o Estádio Ernani Sátiro) não foi capaz de ofuscar de todo a presença sempre charmosa do PV na cena desportiva e cultural local, único testemunho que sobreviveu a era de ouro do futebol na Rainha da Borborema nesse ainda limiar de século.       

 

Foi nesse mesmo começo de século XXI que um verdadeiro boom imobiliário tomou de assalto muitas cidades brasileiras, segregando espaços, excluindo populações pobres e demolição de áreas tradicionais, impondo novos modelos autoritários de viver e morar nas nossas principais urbes. Campina Grande não ficou inume a esse processo mais global de transformações espaciais, o que, comparativamente falando, faz com que a famosa reforma urbana que a cidade vivenciou no século passado pareça coisa pequena. Levado a cabo localmente pelo capital privado e a cumplicidade do poder público nos últimos anos, esse processo tem implicado, dentre outras coisas, na destruição do pouco que restou do patrimônio histórico e arquitetônico que sobreviveu a sanha destruidora ao longo do tempo, a exemplo da outrora moderna malha art décor, à revelia inclusive da legislação protecionista.

 

É nesse contexto que podemos entender a atual polêmica em torno do Estádio Presidente Vargas. No intervalo de tempo que nos separa de sua inauguração, em 17/03/1940, até os dias que correm, o PV (e seu entorno, o bairro do São José) foi bastante valorizado, passando a ser alvo da cobiça do capital imobiliário e seu ideal de cidade verticalizada. Diante desse quadro, a atual diretoria do Treze Futebol Clube, alegando como motivo principal a suposta crise financeira pela qual o clube passa atualmente, anunciou a intenção de vender o Estádio Presidente Vargas, negócio que, caso concretizado, vai beneficiar apenas a sede de lucro do capital imobiliário e os interesses menores da cartolagem.

 

Caso essa trata seja consumada, coloca em risco a própria existência do PV, já que o grupo empresarial que comprá-lo vai com certeza demoli-lo para erguer sobre seus escombros um arranha-céu ou negócio do tipo, contrariando nesse, inclusive, o próprio Estatuto do clube, que em seus artigos 1º e 3º reconhecem, implícita ou explicitamente, o Estádio Presidente Vargas como um dos mais importantes símbolos patrimoniais da sua história.

 

A partir do momento que este fato se tornou público, surgiu um vigoroso movimento na cidade, constituído não só por desportistas, mas por diferentes segmentos da sociedade campinense, que veem no velho e querido PV não apenas um campo de futebol, mas sim um dos mais importantes símbolos da paisagem urbana de Campina Grande. Desde o final ano passado e começo do ano em curso o referido movimento vem realizando uma série de atividades, tais como protestos públicas, debate na imprensa e denúncia aos órgãos competentes, campanha essa, diga-se de passagem, abraçada de pronto pela comunidade em seus diferentes momentos.

 

Porém, o apoio popular não foi suficiente para barrar esse verdadeiro crime lesa-patrimônio, pois se a negociação envolvendo a diretoria do clube e o capital imobiliário se consumar, implicará, ao fim e ao cabo, na venda e posterior demolição do PV, perda essa irreparável para a memória e história da cidade. Para reverter definitivamente esse quadro, é preciso redobrar as forças e continuar desenvolvendo iniciativas para fortalecer a campanha em defesa do Estádio Presidente Vargas.

 

Para isso, o movimento contra a venda/demolição do Estádio Presidente Vargas propõe o seguinte:

1-Que seja formada uma comissão, constituída por diretores, conselheiros e torcedores, com o objetivo de estudar propostas para resolver a crise que o Treze Futebol Clube enfrenta e que não passe pela venda/demolição do Estádio Presidente Vargas.

 

2-Que o Estádio Presidente Vargas seja revitalizado, transformando-se em fonte de renda alternativa para o clube e, ao mesmo tempo, preservado como patrimônio histórico, futebolístico e sentimental de Campina Grande.  

 

*O autor é professor da Unidade Acadêmica de História do Centro de Humanidades (UAHIST/CH/UFCG)

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição.

 


Data: 22/06/2017