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ARTIGO - Bois misteriosos

Benedito Antônio Luciano*

 

Muitos causos de realismo fantástico podem ser encontrados na denominada Literatura de Cordel. Dentre esses, um dos mais famosos é o romance “História do boi misterioso”, de autoria do poeta paraibano Leandro Gomes de Barros.

 

O exemplar deste romance que preservo e mantenho na minha estante é composto por duzentos e dezessete estrofes de seis versos e uma estrofe final de sete versos, formando o acróstico LEANDRO, com versos heptassílabos.

 

No enredo da obra “História do boi misterioso”, o autor estabeleceu como recorte temporal o ano de mil oitocentos e vinte e cinco para iniciar a narrativa da saga fantástica de um boi que nascera “A vinte e quatro de gosto/ Data esta receosa, / Que é quando o diabo pode/ Sentar-se e dar uma prosa:/ Pois foi nesse dia o parto/ Da vaca misteriosa”.

 

A figura do boi que não se deixa pegar faz parte do universo de estórias fantásticas de assombrações e encantamentos contadas e decantadas no interior do Nordeste brasileiro. Como coadjuvantes as figuras de vaqueiros paramentados, cavalos ariscos e donos de antigas fazendas de criação de gado integrados no cenário dos grandes sertões em tempos pretéritos.

 

Um exemplo do boi que não se deixa capturar, preferindo a morte a ser aprisionado, é apresentado na música “A morte do touro mão de pau”, gravada por Antonio Nóbrega no CD “Lunário Perpétuo”.

De acordo com uma informação constante no encarte do disco citado, a letra da música foi composta por Ariano Suassuna inspirado no folheto “O boi mão de pau”, de autoria do poeta e rabequeiro rio-grandense-do-norte, Fabião das Queimadas (1848-1928). Seguem os versos da última estrofe cantada por Antonio Nóbrega:

 

“Silêncio. A serra calou-se/ No poente ensanguentado. / Calou-se a voz dos aboios, / Cessou o troar dos cascos. / E agora, só, no silêncio/ Deste Sertão assombrado, / O touro sem sua vida/ Os homens em seus cavalos”.

 

Em alguns desses relatos, os poderes sobrenaturais do boi são atribuídos ao demônio (cão), como se pode depreender nos versos de “Cantiga do boi encantado”, composta por Elomar Figueira Mello, dentre os quais destaco os seguintes: “De todos boi qui ai no mundo já peguei/ Afora lá ele qui tem parte cum cão/ O tal boi bufa cum esse nunca labutei/ E o incantado que distinemo a pegá/ Êêêê... boi encantado e aruá/ Ê boi, quem havéra de pegá”.

 

Outro exemplo magistral do realismo fantástico pode ser encontrado no inspiradíssimo cordel intitulado “Os versos do vaqueiro Antônio Bernardino versus Boi Cambaú do Sítio São Joãozinho”, de autoria do poeta e artista polivalente Roniere Leite Soares, natural de Boa Vista – PB.

 

Nesse cordel, datado de 29 de abril de 2011, Roniere relata a saga ficcional de seu avô materno, o vaqueiro Antônio Bernardino, ressuscitado do túmulo para capturar o boi Cambaú, um boi de corpo fechado, protegido por feitiçaria, que havia caído do céu para aterrorizar a comunidade pacata de Boa Vista.

 

A obra é composta por quarenta e oito estrofes de oito versos, dispostos em dezesseis páginas, dentre as quais destaco as duas primeiras estrofes: “Narrou o poeta, / Por nome de Bento, / A história antiga/ De um boi violento/ De corpo fechado/ Que solto ao relento, / Passou sete anos/ Sem confinamento. / Não houve vaqueiro/ Nesta freguesia/ Capaz de domá-lo/ Ou ter ousadia/ De prender a fera/ Que há tempos fugia/ Demais protegido/ Por feitiçaria”.

 

Em resumo: na luta sobrenatural entre o vaqueiro Antônio Bernardino e boi o Cambaú, o vaqueiro saiu vencedor. Missão cumprida, o vencedor se despediu da sua amada esposa e retornou ao céu para se apresentar a São Pedro, decolando da Terra dentro de um foguete.

 

* Benedito Antônio Luciano é professor titular do Departamento de Engenharia Elétrica da UFCG.

 

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião da instituição.


Data: 25/09/2018