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Governo contesta regra para anencéfalo

Ministério vai exigir revisão de norma de 2004 que permite doação logo após nascimento de bebê sem cérebro

As regras para o transplante de órgãos do bebê com anencefalia, anomalia que impede o crescimento total do cérebro, estão prestes a mudar.

Até o fim desta semana, o Ministério da Saúde, por meio do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), envia ao Conselho Federal de Medicina (CFM) um pedido formal de revisão da Resolução nº 1.752/04 que hoje permite ao médico fazer transplantes de órgãos do bebê anencéfalo logo ao nascer, com autorização dos pais.

O governo afirma que é contra a doação de órgãos do anencéfalo, até que ele pare de respirar. "Apesar da anomalia, o bebê nasce com a capacidade de respirar. Isso significa que ele tem vida", afirma Clóvis Constantino, presidente do Depto. de Bioética da Sociedade Brasileira de Pediatria, uma das entidades que apóiam a decisão do governo federal.

A conclusão não veio de repente. Sem qualquer alarde, representantes de várias entidades se reuniram há uma semana em Brasília para debater a posição do ministério.

Depois de oito horas de discussão, centros como SBP, Academia Brasileira de Neurologia, Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e até mesmo representantes do CFM chegaram, unanimemente, à mesma opinião do governo, de que o bebê não nasce morto.

"A atual resolução do CFM, portanto, fere princípios éticos e legais e deverá ser revista", avalia Constantino.

O anencéfalo nasce com o tronco cerebral, que é a parte responsável por funções como ritmo dos batimentos cardíacos, reflexos e respiração. "Por definição, a morte cerebral só pode ser determinada depois que o tronco parar de funcionar", diz Constantino.

Quando o CFM autorizou em 13 de setembro de 2004 o uso de órgãos dos anencéfalos para transplante, considerou o bebê portador da anomalia como natimorto cerebral.

"A espera pela morte do tronco cerebral para garantir a existência de morte cerebral só pode ser aplicada nos que têm cérebro", diz Marco Antônio Becker, primeiro-secretário do CFM e relator da Resolução nº 1.752/04.

"Quem não tem cérebro, como é o caso do anencéfalo, não pode sofrer o mesmo critério."

A cada 1.600 crianças, uma nasce com anencefalia. Cerca da metade nasce com vida. Dessas, a maior parte morre em horas e apenas 8% sobrevivem mais de uma semana.

No caso de doação de órgãos do anencéfalo, dias podem fazer toda a diferença.

"Um anencéfalo só é um bom doador ao nascer", afirma Miguel Barbero, diretor da Unidade Cirúrgica Pediátrica do Instituto do Coração (Incor).

Com o passar do tempo, os órgãos vão se degradando, já que faltam estímulos nervosos para o funcionamento do organismo.

"O anencéfalo nasce sem partes vitais do encéfalo, como cérebro, crânio e cerebelo (parte que coordena os movimentos comandados pelo cérebro)", explica José Dias Gherperlli, do Depto. Científico de Neurologia Infantil da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos e presidente do Departamento de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria.

"O corpo não consegue manter, por exemplo, a pressão arterial adequada. Com isso, os órgãos não são irrigados como devem e vão falindo aos poucos. O anencéfalo nasce com os órgãos preservados. Mas quanto mais rápido for o transplante, melhor."

Um dos receptores que mais podem se beneficiar do transplante de órgãos de um anencéfalo são os bebês que nascem com uma doença chamada de síndrome da hipoplasia do ventrículo esquerdo.

Trata-se de um dos problemas mais diagnosticados da vida intra-uterina - a incidência é de 0,6 para cada mil bebês nascidos vivos .

A hipoplasia é responsável por 22% de todas as mortes cardíacas de bebês na primeira semana de vida.

"Só agora, por exemplo, tenho no Incor três diagnósticos intra-uterinos de hipoplasia no Incor que certamente se beneficiariam com o transplante de um coração de anencéfalo", diz Barbero.

Bebê Arthur

No fim do ano passado, o transplante de órgãos do anencéfalo veio à tona com o caso do bebê Arthur, que começou no Hospital Pró-Cardíaco, no Rio, e terminou no Incor. Ele sofria de hipoplasia e morreu em abril, por falta de doador.

"Nos dois primeiros meses de vida, Arthur poderia ter recebido o coração de um bebê com anencefalia", lembra Barbero. "Depois disso, o bebê já estava grande demais (o doador da criança só pode ser aquele com peso igual ou até duas vezes mais que o receptor para ser compatível)."

Rafael Paim, o pai do bebê, bem que tentou.

"Na época, apareceram 18 famílias dispostas a doar o coração do filho anencéfalo para o Arthur. Dois eram compatíveis com o peso do meu filho. Cheguei até a entrar na Justiça para ter a garantia de que meu filho pudesse ser operado, mas foi tarde demais", lembra Paim.

O bebê Arthur teria sido o primeiro a se beneficiar da Resolução nº 1.752/04.

Para Marco Segre, da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas e professor emérito de bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a atitude do governo federal é "fundamentalista".

"Não permitir o transplante imediato de um bebê que vai ter dias ou semanas de vida é uma atitude fundamentalista. Faz parte da definição de morte encefálica a irreversibilidade da situação. O bebê com anencefalia não vai sobreviver. Isso é irreversível."

Procurado pelo Estado, Roberto Schlindwein, coordenador do SNT, do Ministério da Saúde, confirmou por meio da assessoria de imprensa a entrega do documento ao CFM, mas não quis comentar o assunto.


Data: 01/06/2006