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Vale a pena ser cobaia de testes para novos remédios?

A indústria farmacêutica recorre a pessoas com boa saúde para testar - mediante remuneração - seus novos remédios; para muitos, é uma boa maneira de ganhar dinheiro sem fazer nada, mas os riscos existem

Eric, 43, está hospitalizado há 22 dias no centro Optimed Clinical Research, uma unidade moderna de 60 leitos instalada num edifício anônimo, na periferia de Grenoble (leste da França). Restam-lhe três dias para concluir sua estada, mas ele ainda não está autorizado a sair, nem mesmo para um curto passeio.

Ele toma comprimidos em horas fixas e submete-se a exames diversos e a coletas do seu sangue. Estas são tão numerosas que, por vezes, a enfermeira lhe deixa um cateter plantado no braço durante um dia inteiro.

Nesse meio-tempo, ele dorme muito, assiste à televisão, discute com os seus cinco companheiros de quarto, e fica circulando sem rumo entre a lanchonete, a sala de lazer e o pequeno pátio cercado por altos muros.

Contudo, Eric não está doente, muito pelo contrário: antes de ser admitido na Optimed, ele teve de preencher questionários e submeter-se a visitas médicas para mostrar que ele está com boa saúde, que a sua constituição é média (nem muito forte, nem muito fraco), que ele não estava seguindo nenhum tratamento, que ele não estava drogado e não sofria de nenhuma alergia.

Eric se apresentou como voluntário para participar de um "protocolo", ou seja, um teste clínico destinado a testar um novo medicamento, a respeito do qual ele pouco sabe:

"Se eu entendi bem, é um antidepressivo, que deve servir para tratar os esquizofrênicos".

Ele não conhece nem o nome do produto, nem o do laboratório que o está desenvolvendo, porque estas são informações confidenciais. Ele mesmo vive de modo semi-anônimo: aqui, cada voluntário é designado por um código.

Quando ele tiver voltado para casa, Eric deverá retornar três vezes à sede da Optimed para se submeter a novos exames.

Então, ele receberá uma remuneração global de 2.868 euros (R$ 8572), depois de descontados osimpostos: "Não é nada mal, mas, no ano passado era melhor; eu tinha recebido 3.584 euros (R$ 10.712) para ficar 21 dias apenas".

Dito isso, Eric está bastante satisfeito: "Eu estava bem preparado mentalmente antes de chegar aqui; tudo correu bem e me dou bem com todo mundo".

A sua mulher vem com freqüência para visitá-lo, a sua filha fala com ele por telefone, e ele nunca se sentiu em tão boa forma: "No ano passado, eu estava bastante fraco quando saí daqui, mas, desta vez, eu não tive nenhum efeito secundário. Então, para mim, é dinheiro fácil, do jeito que eu gosto".

Na sua vida profissional, Eric vende vestuário em feiras e mercados:

"Trabalho o mínimo possível. Se ao acordar de manhã, eu não tenho a menor vontade de abrir minhas caixas de roupas, vou fazer trekking ou mountain bike. Nunca fui capaz de manter num trabalho com horários estritos e que exige disciplina, então, esses testes me convêm perfeitamente. Aqui, você fica curtindo sua preguiça, e se alimenta bem. Se eu pudesse, voltaria com maior freqüência, principalmente no inverno, mas é proibido".

Assim como todos os voluntários da França, Eric foi informado por ocasião de reuniões preparatórias de que esta atividade não pode em caso algum se tornar uma profissão: a lei proíbe aos voluntários receberem uma remuneração de mais de 3.800 euros (R$ 11.357,63) por ano.

Além disso, entre dois protocolos, eles são obrigados a respeitar um período de resguardo de vários meses.

Para eliminar os eventuais trapaceiros, o ministério da saúde implantou um registro informático nacional que recenseia todos os voluntários, a data e a duração dos seus protocolos e o montante das suas remunerações.

os controles são fáceis de ser mantidos, uma vez que existe na França apenas uma dezena de centros privados autorizados a desenvolver testes conhecidos como de fase 1, ou seja, em voluntários "que não obtêm nenhum benefício terapêutico" do medicamento - em oposição aos testes de fase 2, aplicados em voluntários doentes.

Esses centros são empresas independentes, com as quais os laboratórios farmacêuticos firmam contratos de terceirização, depois da realização de uma concorrência pública. Há também cerca de vinte centros pequenos e muito especializados que pertencem a hospitais públicos.

Antes de um protocolo, o fabricante do produto e o centro de testes clínicos devem receber a autorização da Agência francesa de segurança sanitária dos produtos de saúde (Afssaps), que se pronuncia depois de um inquérito minucioso.

Além disso, um comitê de ética composto de especialistas e de membros da sociedade civil deve dar um parecer favorável, após ter verificado que os voluntários deram realmente seu consentimento e que eles foram corretamente informados.

O doutor Yves Donazzolo, patrão da Optimed e presidente do Clube Fase 1, que reúne os profissionais do setor, se diz satisfeito com o fato de o Estado ter implantado essa regulamentação: "Para os voluntários, a nossa legislação é a mais protetora da Europa, e possivelmente no mundo".

Em contrapartida, o teto de 3.800 euros por ano lhe parece ser um pouco irrisório:

"Nos últimos 15 anos, ele nunca foi atualizado. É uma coisa ótima essa de proteger os voluntários contra eles mesmos, mas, no plano médico, nada justifica que um voluntário seja limitado a um só teste de longa duração por ano. A profissão irá propor uma elevação do teto anual para 7.500 euros [R$ 22.416,38]".

Apesar das restrições, não há nenhuma carência de voluntários. Em 2005, a Optimed recorreu aos serviços de cerca de mil deles, mas ela dispõe de um arquivo com mais de 12.000 candidatos que moram na região, os quais ela convoca em função de critérios adaptados a cada protocolo: idade, sexo, características físicas, preferências pessoais...

Há uma maioria de estudantes, que têm horários maleáveis e que são geralmente sérios e confiáveis, mas a Optimed também precisa de voluntários mais velhos.

Para encontrá-los, ela publica anúncios nos jornais, faz propaganda na Internet, distribuo panfletos em caixas de correios. Com isso, ela recebe mais de 50 novas candidaturas por semana.

Yekdouni, 29, está participando do mesmo teste que Eric, mas ele não está em tão boa forma:

"Sinto-me cansado o tempo todo, estou de saco cheio. No ano passado, eu tinha feito um teste de três dias e tudo correu bem, mas, 25 dias, é muito tempo, é muito demorado, e eu não pretendo mais voltar para cá".

A sua mulher, que está grávida, mora do outro lado da cidade e, por conta disso, ela não veio visitá-lo com freqüência. Yekdouni é um operário de manutenção, mas ele se feriu na mão há um ano:

"Eu beneficiei de uma folga de longa duração; não estou recebendo grande coisa e não posso mais trabalhar; a minha mão me faz sofrer sem parar, então eu venho aqui".

Para ele, 2.864 euros (R$ 8.560) constituem uma bela quantia, já que antes do seu acidente, ele ganhava 950 euros (R$ 2.839,41) por mês: "Eu tenho projetos, talvez compre um carro de segunda-mão, e apetrechos para o bebê".

Na lanchonete, Christophe, 37, está almoçando em silêncio, com ar sombrio. Ele chegou na véspera, mas ele conhece o lugar:

"É o meu sexto protocolo em seis anos; já participei de quatro em Paris, e de dois aqui. Sou de Grenoble e moro em Paris; vivo dando idas e voltas para ver minha filha, que vive aqui com a minha ex-mulher".

Ele sonha ser realizador de documentários, mas, no dia-a-dia, ele é agente imobiliário em Paris: "Eu sou pago por meio de comissões; não consegui obter um salário fixo, e os negócios não vão muito bem; então, acabei voltando para cá, mais uma vez".

Os seus colegas estão a par desta sua atividade paralela, mas não a sua família:

"Os meus pais e a minha irmã acham que eu estou em Paris; tenho vergonha de lhes confessar que eu cheguei a esse ponto. Não há mistério algum: quando você é bem-sucedido na vida, não precisa submeter-se a protocolos".

Então, ele começa a sorrir: "Esses 2.800 euros são um meio para levar minha filha em férias comigo".

Amandine, 27, chegou nesta clínica com o seu violão. Ela é instrumentista e cantora, mas, nos últimos tempos, ela sobrevive apenas com a renda do RMI (renda mínima de inserção, que o Estado paga aos desempregados):

"No que diz respeito à minha família, eu sou tenho a minha mãe; ela não pode me ajudar por ser operária".

Falando com muitos rodeios, ela evoca uma vida de barcas furadas, rude e estressante, e parece estar aliviada por estar protegida do mundo exterior durante três semanas:

"Eu preciso deste dinheiro, não para fazer a farra, e sim para tirar minha conta bancária do vermelho. Além disso, o fato de ser hospedada e alimentada durante três semanas não é desprezível. Eu adoro este oásis de conforto; não tenho mais preocupações, sou servida à mesa, encontro pessoas interessantes. Isso aqui não é nem um pouco uma prisão, muito pelo contrário, é igual a "Loft Story" na televisão [equivalente francês ao "Big Brother Brasil"], só que sem as câmeras".

No pátio, um pequeno grupo de avós conversa animadamente, tomando um banho de sol. Elas estão aqui para testar um medicamento contra a osteoporose, destinado às mulheres que já estão na menopausa.

Marie-France, uma morena enérgica, freqüenta a casa de longa data:

"É pelo menos o meu décimo quinto protocolo; já perdi a conta. Antes, eu trabalhava no comércio, e quando a clínica me chamava, eu tirava uma folga não remunerada. Hoje, sou aposentada e tenho todo o tempo do mundo".

Ela vai receber 1.150 euros (R$ 3.437,18) por três hospitalizações de dois dias: "Eu não preciso verdadeiramente deste dinheiro, mas ele me permitirá financiar minhas férias ou mimar meus netos".

Marie-France aprecia também os check-up aos quais ele deve se submeter: "Eles nos fazem um balanço de saúde completo. Nas nossas idades, é preciso vigiar isso de muito perto. Aqui, é rápido e gratuito, tudo é lucro".

Do outro lado do corredor, chega-se ao setor dos estudantes: o quarto está apinhado de computadores portáteis, de fones de ouvidos, de aparelhos de MP3, de telefones celulares, de livros de cursos... Cinco rapazes estão acamados.

Eles não têm autorização para se levantar, nem mesmo para se alimentar, e quando eles precisam ir ao banheiro, eles vão sempre acompanhados por uma enfermeira, uma vez que eles estão testando medicamentos contra a hipertensão, que podem provocar vertigens.

Por três hospitalizações de dois dias, seguidas por uma série de visitas médicas, eles receberão 990 euros (R$ 2.959). Todos eles contam a mesma história: os seus pais não têm condições para financiar seus estudos, então os protocolos pagam bem, são práticos e fáceis de fazer.

Mathieu, 19, um estudante de direito, está aqui para pagar o conserto de um velho carro, um presidente que ele ganhou da sua avó:

"Não é nenhuma extravagância; descolei um trabalho de verão num bar-café a 30 km da minha casa, e preciso realmente de um carro. Durante o ano letivo, os estudos de direito exigem muito de nós, é impossível encontrar um trampo paralelo, então a Optimed acaba sendo a melhor solução".

Quando eles estão hospitalizados, os voluntários não se mostram muito propensos a falar dos temores de serem vítimas de um acidente. Eles se mostram mais à vontade para fazer comentários a respeito quando eles estão do lado de fora e que eles não estão se submetendo a nenhum teste.

Pierre, 24, um estudante de história da arte, se submeteu a um protocolo recentemente para a firma Aster, um importante centro médico de Paris:

"É verdade que para o meu primeiro protocolo eu estava com muito medo. Eu tinha um cateter enfiado no braço, ventosas aplicadas no peito, um dedo preso numa pinça, e eu estava conectado com aparelhos eletrônicos instalados ao lado da minha cama. Era muita coisa. Senti uma grande angústia, imaginava todo tipo de efeitos secundários. Assim que um sistema de monitoramento ressoava em algum lugar, eu dava um pulo na minha cama. Para me tranqüilizar, eu dizia a mim mesmo que talvez eles me tivessem dado um placebo: isso ocorre em todos os protocolos, mas ninguém sabe quem os recebe. Em outros momentos, no dormitório, todos nós começávamos a delirar juntos; a gente fingia estar morrendo com dores atrozes. Uma boa brincadeira sempre ajuda".

Com o hábito, Pierre-Hadrien superou seus temores: "Em retrospecto, fiquei feliz por ter superado aquela prova; eu estava orgulhoso e me sentia mais seguro de mim".

Em contrapartida, os seus amigos intelectuais se mostraram chocados com a sua aventura:

"Em vez de se preocuparem comigo, eles me julgaram. Eles me criticaram por ter vendido meu corpo por dinheiro; eles me disseram que isso equivale a fazer michês na calçada. Eu não discuto mais sobre isso com eles; eu sei que estou certo ao fazer isso, pois estou ajudando a fazer avançar a ciência".

Da mesma forma, a delicada questão da trapaça é abordada com maior franqueza do lado de fora dos centros de testes. A., 42, um motorista de caminhão e operário de manutenção, foi despedido depois de nove anos trabalhando na mesma empresa, porque a sua carteira de motorista lhe havia sido retirada depois de uma série de infrações:

"Eu não disse nada, porque tive medo de que os meus chefes me pusessem novamente na linha de montagem, e isso, eu não queria mais. Então, eu confeccionei uma falsa carteira, mas o meu patrão descobriu tudo, e me mandou embora".

Depois de seis meses de desemprego e de barcas furadas, ele se depara por acaso com um anúncio classificado de um centro da província.

Sem hesitação, ele comparece à visita médica, um pouco como se fosse uma entrevista para um emprego:

"Para ser admitido, é preciso mentir um pouco, é obrigatório pois ninguém é perfeito. Eu sou alérgico ao pólen, mas quando eles me fizeram uma pergunta a este respeito, eu respondi que não. Há também uma outra coisa: eu faço muita musculação e tomei anabolizantes até o ano passado. Também procurei esconder este fato. Eles nos explicaram que era preciso dizer-lhes tudo, caso contrário poderia ser muito perigoso, mas eu não tenho medo algum, e não tenho escolha".

A. conseguiu participar de um primeiro protocolo, que lhe proporcionou 1.200 euros (R$ 3.586.62).

Três meses mais tarde, um segundo protocolo lhe é oferecido, a 2.200 euros (R$ 6.575,47):

"Eu estava realmente feliz, mas, no dia da minha admissão, fui rejeitado; eu tinha uma taxa de adrenalina excessiva no sangue, porque na noite precedente, só tinha dormido duas horas".

Sem demora, ele faz uma terceira tentativa: "Eles me fizeram uma proposta para ganhar 1.300 euros; infelizmente, perdi 900 euros com a confusão anterior, e estou com medo que tudo dê errado de novo".

Sentado à mesa do bistrô que fica do outro lado da rua, frente ao centro de testes, A. reza para não ser recusado mais uma vez.


Data: 01/06/2006