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Pierre Changeux, neurobiólogo: "As emoções podem ser decifradas com bases neurológicas"

Chaves bioquímicas e impulsos elétricos também explicariam o amor, a paixão e o ódio

Entre os membros da comunidade científica dedicada ao estudo do cérebro, são cada vez menos os que se atrevem a descartar que as emoções façam parte da consciência.

E se a consciência começa a ser compreendida a partir de mecanismos biológicos, o amor, a paixão, a angústia e o ódio também poderiam ser explicados a partir de chaves bioquímicas e impulsos elétricos.

O neurobiólogo francês Pierre Changeux, professor no Instituto Pasteur e no Collège de France, afirma que as emoções podem ser decifradas a partir de uma base neurológica.

Seus trabalhos com modelos experimentais, sobretudo ratos, parecem demonstrar isso. Changeux fez há pouco em Bilbao, Espanha, uma conferência organizada pela Fundação BBVA e o Centro de Pesquisa Cooperativa CIC-Biogune.

- Os ratos têm consciência?

Pierre Changeux - A pergunta é se somente a espécie humana tem consciência. A tese de que parto é que há uma hierarquia de níveis de consciência, e que embora o rato não possua todas as características dos humanos há elementos comuns com as pessoas que nos fazem pensar que eles efetivamente têm consciência.

- Que tipo de características?

Changeux - Sabemos que o rato pode mudar de estado de consciência: sonhar, dormir ou despertar, e que pode perdê-la com a aplicação de anestesia geral, como ocorre com as pessoas, e recuperá-la quando desaparecem seus efeitos. Dito de outro modo: o rato possui um espaço global de representação no qual elabora um programa de ação. Propomos que esse espaço de trabalho consciente se associa a uma rede neuronial composta de células nervosas, identificadas por Santiago Ramón y Cajal, com longos axônios que podem ir de um hemisfério cerebral ao outro.

- O que implica essa proposta?

Changeux - Demonstramos que, no rato, neurônios específicos chamados colinérgicos liberam uma substância neurotransmissora que é a acetilcolina, que tem papel fundamental tanto na vigília quanto na atenção, dois elementos característicos da consciência. Estudamos o comportamento de ratos geneticamente modificados que não têm receptores para acetilcolina nos dois grandes tipos de comportamento do sistema locomotor dessa espécie: o rápido, vinculado à navegação, e o lento, relacionado à exploração.

- E o que descobriram?

Changeux - Chegamos à conclusão de que o receptor da acetilcolina é necessário para o acesso à consciência no caso do rato e também do ser humano. Em nossa pesquisa se comprovou que nos ratos geneticamente modificados sem receptores de acetilcolina sua capacidade de exploração desaparece. Além disso, um grupo de neurologistas australianos relacionou uma mutação genética desse tipo de receptor a um tipo de epilepsia, a epilepsia noturna de lóbulo frontal.

- Quer dizer que se poderia pensar em derivações clínicas?

Changeux - O fundamental é conhecer e compreender a base neural da consciência. A partir daí pode-se pensar ou gerar aplicações.

- Está sendo experimentado em novos medicamentos?

Changeux - Está sendo analisado o estímulo farmacológico da vigília no caso de pessoas de idade avançada com problemas cognitivos. Do mesmo modo, estão sendo estudadas as propriedades dos anestésicos gerais e as conseqüências que podem ter nos humanos. Outro aspecto é sua possível associação com o estado de coma, o quê o produz e como se pode tentar tirar a pessoa desse estado de perda de consciência.

- Esse tipo de estudo será facilitado se as ações conscientes e as inconscientes forem diferenciadas do ponto de vista molecular?

Changeux - Não é necessário ir tão longe. Pode-se estabelecer quando uma visão é consciente ou inconsciente comparando as imagens cerebrais. Nestas, os pesquisadores encontram que o córtex pré-frontal é ativado pelo mecanismo do consciente, e não pelo do inconsciente. Isso se relaciona à hipótese de que partimos, que é que o espaço de trabalho consciente se compõe de neurônios com axônios longos que se situam no córtex frontal do cérebro.

- O senhor fala da consciência como um estado fisiológico com base neural. Essa explicação pode ser utilizada para as emoções?

Changeux - As emoções fazem parte do estado consciente e são importantes para a avaliação do que está acontecendo ao redor do sujeito. Elas se incluem na descrição da base neural da consciência. E isso está na linha do que diz Antonio Damasio [cientista português especializado no estudo da mente pela perspectiva da neurociência], que afirma que as emoções fazem parte da consciência.

- As emoções poderiam ser decifradas a partir de uma base neural?

Changeux - Sim, porque há bases neurais que podem ser explicadas. Há uma parte do cérebro, que é conhecida como sistema límbico, que regula as emoções. No século 19, descobriu-se esse sistema estudando o cérebro de pessoas infectadas pelo vírus da raiva, que destruía de forma seletiva os neurônios do sistema límbico e alterava as emoções, daí o nome de raiva. Desde então se realizaram diversos estudos, como o de Damasio e outros pesquisadores, que aprofundaram essa linha.

- E expressões humanas como a arte, que o senhor analisou com especial interesse?

Changeux - Há uma nova disciplina, chamada neuroestética, que relaciona a criação e a contemplação estética com as funções do cérebro, e que é extremamente interessante.

- Quando se alcançará um conhecimento completo do cérebro?

Changeux - Comentei alguma vez que o século 21 será o século do cérebro, porque os neurobiólogos chegaremos a compreender como funcionam a consciência, o pensamento e as emoções. Nos últimos 50 anos se avançou muito e o progresso continuará. No entanto, também estou certo de que ficaram muitas coisas para descobrir.

- Não lhe causam temor as implicações que o conhecimento completo desse órgão pode acarretar?

Changeux - Não, mas é importante insistir que é preciso estar atentos para que os trabalhos científicos sobre o cérebro humano sejam utilizados para lutar contra as doenças neurológicas e psiquiátricas, melhorar a qualidade de vida a ajudar na educação da sociedade.

- Por que utilizou a nicotina em suas pesquisas sobre os receptores da acetilcolina?

Changeux - O receptor que estudamos também se chama receptor nicotínico da acetilcolina, um termo proposto no início do século 20. Além de ser um receptor da acetilcolina, também é da nicotina.

- Que implicações isso tem?

Changeux - Está em processo de estudo, mas agora se começa a saber que os esquizofrênicos são fumantes compulsivos. Em 98% dos casos se considera que esses doentes utilizam o tabaco como automedicação. Por essa razão está sendo analisado o uso da nicotina como medicamento.

(Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves)


Data: 06/07/2006