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Interações perigosas - Artigo

Um não-praticante de uma área pode adquirir capacidade de interagir com os especialistas

Marcelo Leite - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e responsável pelo blog Ciência em Dia.

 

Uma notícia intrigante surgiu no periódico científico "Nature" de quinta-feira: um sociólogo conseguiu enganar físicos do campo de ondas gravitacionais, passando-se por um deles.

Foi um pouco como o físico Alan Sokal, que ludibriara sociólogos, há exatos dez anos, publicando um artigo falso e aloprado sobre gravidade quântica no periódico de humanidades "Social Text".

Não se trata de uma vingança tardia, porém. O propósito do ardil de Sokal era denunciar a falta de rigor de quem pesquisava práticas do campo de ciências naturais de fora, sem domínio real dos métodos e conceitos eleitos como objeto de estudo. Muita gente viu a façanha, na época, como o lance decisivo da chamada Guerra das Ciências. Ela teria sido vencida pelos inimigos dos "pós-modernos", como é rotulado, ainda hoje, quem se mete a criticar a ciência experimental.

O programa de Harry Collins, da Universidade de Cardiff (Reino Unido), é outro. Tampouco houve falsidade em seu experimento noticiado pela "Nature" e aceito para publicação no periódico especializado "Studies in the History of Philosophy of Science" (com um co-autor brasileiro, Rodrigo Ribeiro): enviar pares de respostas de um físico da área e de um não-físico bem informado (Collins) a sete questões especializadas sobre radiação gravitacional para outros físicos do ramo, para que discriminassem o profissional do amador.

Nenhum dos nove juízes flagrou Collins como "impostor".

Melhor ainda, dois deles o indicaram como o verdadeiro especialista. No artigo, dá-se por provado o ponto que interessava ao sociólogo: mostrar que um não-praticante de uma área especializada pode, sim, adquirir capacidade de interagir discursivamente com os especialistas, mesmo não sendo capaz de conduzir os experimentos que alicerçam tal conhecimento. É o que Collins chama de "interactional expertise" (ou "especialização interativa").

Nada mais que um experimento, claro, que precisa ainda ser reproduzido e escrutinado por outros pesquisadores. Traz apoio, porém, para quem acredita na possibilidade de uma crítica de ciência (e não "da" ciência) que não seja arbitrária nem relativista, assim como na necessidade de um jornalismo científico que não se restrinja à propaganda das maravilhas da ciência.

A meta, difícil, mas não irrealizável, é dialogar construtivamente com a comunidade científica.

O próprio Collins defende que a área acadêmica dos estudos de ciência e tecnologia (STS, na abreviação em inglês) precisa se reinventar, sob pena de perder-se em irrelevância. Há uma alternativa à sua frente: "Ela deve ou se tornar explicitamente um movimento político caracterizado pela desconfiança na ciência, ou aceitar que não há razão pela qual a ciência (e isso inclui experimentação) não deva se tornar uma parte central de seus métodos", diz.

"Isso significaria substituir críticas implícitas e generalizadas a toda a ciência por ataques explícitos a episódios específicos de ciência".

É pouco provável que tal amadurecimento das humanidades seja reproduzido do outro lado do front.

Afinal, aceita a possibilidade de especialistas interativos em todos os campos (humanidades também), não haveria razão para barrar sua participação em painéis que decidem sobre destinação de verbas de pesquisa, por exemplo.

Para boa parte dos cientistas naturais, o diálogo começa e termina com uma frase: "Confiem em nós".


Data: 10/07/2006