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TV digital: Decisão por padrão japonês tem acolhida mista

Executivo europeu lamenta, brasileiro vê oportunidade e acadêmicos se reorganizam

Escolhido o padrão japonês para o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre, o país precisa agora definir como se posicionará nesse mercado, assunto sobre o qual o Decreto 5.820, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 29 de junho, e o acordo de cooperação entre os dois governos trazem poucos esclarecimentos.

Enquanto isso não se define, pesquisadores participantes do consócio do sistema e que estudaram os padrões norte-americano (ATSC), europeu (DVB) e japonês (ISDB-T) começam a se articular para dar continuidade aos seus projetos.

Para quem defendeu o padrão europeu, a decisão do governo trará dificuldades ao Brasil pelo tamanho pequeno do mercado e na inserção internacional. Nas manifestações dos pesquisadores e de entidades do terceiro setor, várias críticas e dúvidas quanto ao acordo de cooperação e ao decreto.

País ficou isolado, diz representante do sistema europeu

Informado por Inovação da decisão anunciada pelo governo brasileiro no dia 29 de junho, Cesar Vohringer — que apresentou o ponto de vista das empresas européias aos membros do governo brasileiro durante as negociações em 2005 — lamentou a escolha do padrão japonês.

De acordo com o ex-chefe de Tecnologia da Divisão de Eletrônica de Consumo da Philips, o primeiro ponto a lamentar é o País perder o acesso às linhas de financiamento para pesquisa e desenvolvimento (P&D) que a Europa pretendia por à disposição dos brasileiros.

Mas a questão principal para ele é estratégica: "A questão do Brasil é querer ou não fazer parte da nova economia. Não mais a economia de hardware ou set-top box, na qual teria de brigar com os chineses, mas a economia do futuro: brigar por aplicativos em software e por melhorias do sistema que possam se reverter em patentes e royalties e que abram a maior possibilidade de exportar", completa.

O set-top box a que ele se refere é o conversor que permitirá aos televisores convencionais analógicos receber e reproduzir o sinal digital.

Brasileiro, atualmente morando em Portugal — aposentou-se em maio de 2006 —, de onde falou a Inovação, Cesar começou sua carreira na Philips há 33 anos, em São Paulo, como estagiário e depois engenheiro de desenvolvimento de televisão a cores — e nunca mais deixou de estar por perto do assunto TV.

Ele conta que um set-top box custa, na Alemanha, em torno de 50 euros — R$ 135. Nas condições de mercado que a opção pelo padrão japonês instalará no País, Cesar duvida que o equipamento possa vir a custar menos de três vezes esse valor.

A equação é a seguinte, de acordo com ele: um mercado pequeno — porque o mercado brasileiro para TV Digital será pequeno, em especial no começo —, para o qual há necessidade de um esforço de desenvolvimento específico. O resultado não poderá ser outro a não ser preço alto.

A vantagem do padrão DVB é o mercado de 56 países — entre eles a Índia, com necessidades similares às do Brasil, um país em rápido crescimento, de grande população e de renda parecida com a nossa.

"O Brasil poderia desenvolver aplicativos para televisão interativa em educação, em aplicações médicas e poderia exportar ou cooperar com países de perfil semelhante", argumenta.

O engenheiro também participou das negociações com a Argentina. Mesmo ressalvando não poder divulgar o teor das conversas que manteve com o governo Nestor Kirchner, Cesar desacredita da possibilidade de o país se juntar ao padrão europeu — embora exista o desejo de seguir a decisão brasileira.

Software para os três padrões pode ser um bom nicho

Para Flávio Grynszpan, diretor da Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei) e do Departamento de Tecnologia do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), deve-se separar na discussão o que se relaciona ao mercado interno e ao mercado externo. Para ele, o que importa é o mercado e a competição global.

"Os chineses vão ter um padrão próprio, mas fazem produtos para TV Digital nos três padrões. Nosso mercado interno não vai gerar uma escala adicional para essa indústria, no caso da adoção do padrão japonês, mas isso não impede o Brasil de fazer desenvolvimento para todos os padrões", afirma.

O empresário, que tem trabalhado com o tema outsourcing em tecnologia da informação e da comunicação e atração de centros de desenvolvimento para o Brasil, sugere como possibilidade a área de software, que requer menos investimento e depende mais do grau de competência e de organização das empresas.

"Nossa indústria de software, por exemplo, poderia ser contratada para desenvolver projetos para quaisquer padrões, como ocorre com os indianos", exemplifica.

O ex-presidente da Motorola diz que o acordo com o Japão só será realmente vantajoso para o País se houver a possibilidade de os japoneses contratarem empresas brasileiras para fazer esses desenvolvimentos para o sistema como um todo, e não apenas inovações que sejam utilizadas no Brasil.

"O interessante é termos atividades de outsourcing, em que o Japão nos contrate para fazer desenvolvimentos que sejam aplicados no sistema usado aqui e pelos japoneses", diz.

"Ainda não vi nas discussões sobre a TV Digital um sinal sobre que tipos de negócios vamos fazer a partir dessa escolha: como vamos ganhar dinheiro, atrair investimento, gerar novos negócios, ter empresas brasileiras competindo globalmente nesse setor", completa.

Ele lembra que o fato de o Brasil ter escolhido o padrão japonês não garante ao País o mercado japonês ou o brasileiro, pois haverá a competição de empresas de outros países, que também produzem e desenvolvem equipamentos, sistemas e componentes para o padrão japonês.

A única contrapartida discutida pelo governo com o Japão, e amplamente divulgada, relaciona-se à instalação de uma fábrica de semicondutores no Brasil.

"Ter a fábrica aqui para atender ao mercado interno não justifica, pois é muito pequeno, não tem escala para esse tipo de investimento", afirma. Pode-se pensar também na possibilidade de os japoneses comprarem os chips fabricados aqui, para aumentar essa escala, mas o Japão tem fabricantes mais próximos.

"Entrar em TV Digital para produzir set-top box não me parece a melhor alternativa, pois vamos concorrer com países que já fabricam esse produto, como a China”, destaca, em concordância com Cesar Vohringer.

Para ele, o Brasil precisa definir claramente de que forma quer se inserir em TV Digital, em que nichos pode competir, olhando para todos os sistemas existentes, não apenas para o adotado pelo País, aproveitando-se inclusive da competência que está se desenvolvendo a partir da discussão dos padrões e da adoção do sistema japonês.

O que diz o decreto

O artigo 5º do Decreto 5.820 determina a adoção do padrão japonês e a incorporação das inovações tecnológicas aprovadas pelo Comitê de Desenvolvimento criado pelo Decreto 4.901, de 26 de novembro de 2003.

O comitê é composto por um representante de cada um dos seguintes órgãos: Ministério das Comunicações, que o preside; Casa Civil da Presidência da República; Ministério da Ciência e Tecnologia; Ministério da Cultura; Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ministério da Educação; Ministério da Fazenda; Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; Ministério das Relações Exteriores; e Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República.

Esse comitê ficou responsável pela contratação e divulgação do resultado final das pesquisas feitas por quase 1.400 cientistas reunidos em 22 consórcios para estudar os padrões existentes e propor inovações que atendessem às demandas do mercado brasileiro.

O resultado desse estudo, dizem os titulares dos ministérios em artigo publicado na página 3 do jornal Folha de S. Paulo do dia 2 de julho, ajudou o governo a definir as características do sistema.

Isso, combinado com as consultas feitas junto a empresas difusoras de TV e de telefonia, indústrias do setor eletrônico e discussões realizadas no Congresso e em fóruns diversos, subsidiou o Poder Executivo para a escolha do padrão, que "não é igual a nenhum dos três padrões existentes: é o mais avançado de todos", dizem, no artigo, os ministros Dilma Roussef, da Casa Civil, Celso Amorim, das Relações Exteriores, Guido Mantega, da Fazenda, Luiz Furlan, do Desenvolvimento e Indústria, Hélio Costa, das Comunicações, e Sérgio Rezende, da Ciência e Tecnologia.

O Comitê de Desenvolvimento será responsável também por fixar as diretrizes para elaboração das especificações técnicas a ser adotadas pelo sistema.

Criará um fórum para assessorá-lo acerca de políticas e assuntos técnicos referentes à aprovação de inovações tecnológicas, especificações, desenvolvimento e implantação do mesmo. O fórum deverá ser composto por representantes do setor de radiodifusão, do setor industrial e da comunidade científica e tecnológica.

O decreto define, no artigo 10, que o período de transição do sistema de transmissão analógica para o digital será de dez anos, contados a partir da publicação do mesmo. Autoriza ainda a União a criar quatro canais digitais.

O Canal do Poder Executivo fará a transmissão de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Executivo. O Canal de Educação transmitirá programas para desenvolvimento e aprimoramento do ensino à distância de alunos e capacitação de professores.

O Canal de Cultura será para transmissão destinada a produções culturais e programas regionais. O Canal de Cidadania terá programas das comunidades locais e divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal.

Críticas, elogios e dúvidas sobre o decreto e aos termos do acordo de cooperação

Os pesquisadores mostraram-se divididos quanto à escolha do padrão japonês, em especial com relação a como serão aproveitadas as inovações geradas a partir dos estudos dos 22 consórcios.

Segundo o pesquisador Luís Geraldo Pedroso Meloni, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp e coordenador do consórcio de pesquisa voltado para o canal de interatividade e desenvolvimento do middleware (o sistema operacional do conversor de sinal), os padrões hoje são muito semelhantes e sofrem evoluções ao longo do tempo.

O aspecto positivo do acordo, para ele, é a decisão por um sistema misto, de forma que se espera uma continuidade do trabalho dos grupos de pesquisa brasileiros e da interação destes com empresas para que se chegue aos desenvolvimentos e inovações, em um prazo relativamente curto de tempo.

Em 18 meses, no máximo, as emissoras devem estar transmitindo em sinal digital, segundo o decreto.

Guido Stolfi, professor do Laboratório de Comunicações e Sinais do Departamento de Engenharia de Telecomunicações e Controle da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), trabalhou nas pesquisas envolvendo o sistema de modulação junto com um grupo da Universidade Mackenzie. Os estudos foram feitos em cima do padrão japonês.

"Nossas pesquisas ainda precisam ser aprofundadas para saber se a relação custo-benefício é vantajosa. Estamos continuando nossos estudos, há possibilidades de aplicação em outros sistemas", comenta.

Para Stolfi, entre os três sistemas escolhidos, o japonês é o melhor, do ponto de vista do usuário, pois garante a melhor recepção. O sistema europeu, segundo ele, tem o mesmo funcionamento do japonês, mas em condições fixas. O nipônico, mais evoluído, permite a mobilidade, fator exigido pelo governo brasileiro na definição do sistema a ser implantando no País.

Stolfi acredita que há espaço para que as inovações geradas a partir do Brasil sejam absorvidas. "Mas isso não ocorrerá do dia para a noite. Levamos um ano para entender as minúcias do sistema e fazer testes em campo e gastamos quase seis meses apenas esperando os equipamentos importados chegarem", lembra.

"O importante é que temos massa crítica e uma infra-estrutura para fazer pesquisas, testes e gerar conhecimentos e inovações que podem ser aplicadas pela indústria", acrescenta.

Ele diz ainda que hoje os padrões são cada vez mais efêmeros e que a adoção de um padrão por parte do Brasil não o faz ficar preso a um sistema.

Para ele, a escolha por um padrão utilizado apenas pelo Japão não impede a exportação de tecnologia feita no Brasil, do ponto de vista técnico, pois, com pequenas alterações nos chips, é possível fazer produtos e sistemas para todos os padrões.

A pesquisadora da Faculdade de Engenharia Elétrica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Cristina de Castro participou do projeto da PUC-RS de desenvolvimento de um sistema de modulação e de antenas inteligentes.

"Conhecemos a complexidade do sistema e sabemos o que é propor alguma sugestão para um sistema já reconhecido. Não vai ser um trabalho fácil, mas estamos prontos para trabalhar nesse contexto", afirmou a pesquisadora para a Agência Brasil, site de notícias do governo.

Em sua opinião, do ponto de vista técnico, o Brasil deveria ter optado por desenvolver um modelo nacional de TV Digital. "Parece que o governo achou uma solução de meio-termo. Segundo a ótica do governo, [o sistema japonês] é melhor para o desenvolvimento do País no contexto industrial, talvez por agregar mais rápido as indústrias em torno de um sistema já existente, ao mesmo tempo em que garante a incorporação da tecnologia nacional", avaliou.

O projeto do qual Cristina participou resultou na criação de um protótipo de modulador, equipamento usado para a conversão dos dados digitais (bits e bytes) em ondas de rádio e televisão.

Segundo o coordenador do projeto, Fernando Castro, também da PUC-RS, o protótipo é compatível com todos os sistemas internacionais. Para isso ocorrer, é necessária apenas uma adaptação nos receptores do sinal digital.

"Esse receptor modificado e melhorado pela tecnologia desenvolvida por nós consegue conviver amigavelmente com todos os demais. Não há necessidade de se mudar todos os receptores ou outros equipamentos e o transmissor também não muda", explicou ele para a agência de notícias.

As entidades ligadas ao terceiro setor foram bastante críticas em relação ao decreto e ao acordo, em especial o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que participou das discussões com o governo como representante da sociedade civil.

Em artigos divulgados em seu site, a entidade afirma que, pelo acordo de cooperação, o governo japonês se comprometeu apenas a encorajar seu setor privado a trabalhar em parceria com o Brasil e esperar que haja investimento na indústria eletrônica brasileira.

Segundo o FNDC, o "Memorando entre os Governos da República Federativa do Brasil e do Japão referente à implementação do sistema brasileiro de TV Digital, baseado no padrão ISDB-T, e à cooperação para o desenvolvimento da respectiva indústria eletroeletrônica brasileira" está dividido em cinco pontos.

"Somente em um deles, a criação de um grupo de trabalho conjunto para incorporar o padrão japonês, há um comprometimento claro do Japão", afirmam no artigo.

Tudo que poderia representar um ganho para o Brasil, na avaliação da entidade, ficou no plano das intenções: o desenvolvimento da indústria de microeletrônica local, a incorporação das soluções inovadoras brasileiras, o investimento direto japonês na produção de bens eletroeletrônicos no Brasil e a qualificação da mão-de-obra.

Para a entidade, o acordo não traz de maneira expressa a obrigação de incorporação das tecnologias desenvolvidas pelos consórcios; limita-se a informar que o grupo de trabalho conjunto a ser formado pelos dois governos investigará soluções que ambas as partes considerem técnica e economicamente viáveis.

Sobre a fábrica de semicondutores, o Japão assumiu apenas o compromisso de contribuir na elaboração de um plano estratégico para o desenvolvimento dessa indústria.

O Brasil se compromete, pelo acordo, a fazer esforços no sentido de estimular joint-ventures para atrair investimentos diretos para o setor de eletrônica, enquanto o Japão espera a retomada do investimento japonês na indústria eletrônica no Brasil, como para televisores digitais e componentes essenciais, como LCDs e plasma.

O acordo prevê ainda o apoio do governo japonês, "conforme a necessidade", na formação de um centro de desenvolvimento a ser criado pelo Brasil para promover a transferência de tecnologia relacionada ao padrão ISDB-T.

De acordo com o FNDC, os dois países discutirão, no grupo de trabalho conjunto, programas que prevêem o recebimento de estagiários, envio de instrutores e o treinamento de peritos.

Contudo, segundo o memorando, caberá ao governo japonês apenas considerar a possibilidade de enviar peritos e de receber estagiários no ramo da eletrônica.

O coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), Gustavo Gindre, afirmou para a Agência Brasil que um dos problemas da escolha do padrão japonês é que a tecnologia não foi desenvolvida para atender às necessidades da sociedade brasileira.

"Cada tecnologia responde às demandas de quem as constrói. O modelo de implantação de TV Digital no Japão não tem nada a ver com a realidade brasileira", avaliou.

"A população japonesa, se quiser, tem em sua casa banda larga velocíssima, computadores extremamente modernos e não precisa usar a televisão para acessar a Internet. No Brasil, apenas 6% da população tem acesso à Internet banda larga", exemplificou.

Ele explicou que o padrão japonês foi construído para atender à prioridade daquele mercado, que era a qualidade da imagem. Como a transmissão em alta definição ocupa todo o espaço de radiodifusão, será difícil a ampliação de canais e serviços, criando, dessa forma, constrangimentos a um dos quesitos definidos pelo governo brasileiro para o sistema nacional, que é a inclusão digital.

Para ele, o Brasil perdeu a chance de gerar empregos qualificados. "Vamos gerar emprego em Tóquio e não no Brasil, porque vamos ser apenas consumidores de tecnologia importada e não produtores de tecnologia", criticou.

"Adotando tecnologia brasileira iríamos ter condições de nos inserirmos melhor na globalização, porque quem se insere melhor é quem tem algo para vender — e teríamos tecnologia para vender", concluiu.


Data: 11/07/2006