A inferioridade brasileira, conveniente convicção da elite - Artigo de Carlos Lessa
O diagnóstico da elite, quando não atribui explicitamente a culpa a variáveis étnico-sociais, se reveste, hipocritamente, de uma proposta saneadora e ambígua: "é necessário educar o povo"
Carlos Lessa - Ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES, professor titular de Economia Brasileira da UFRJ
Nossa elite reafirma, periodicamente, a inferioridade brasileira. São poucos os momentos em que elogia o país. Fala bem de nossa paisagem. Apresenta a feijoada, com orgulho, ao visitante.
Exalta a escola de samba, admite nossa excepcional musicalidade e se veste de verde e amarelo no campeonato mundial de futebol. Muito pouco mais escapa. Para a elite, os problemas brasileiros não se derivam de seu comportamento.
É preguiçosa em aprofundar a discussão para identificar-lhes as raízes. Como Pôncio Pilatos, lava as mãos em relação a eles. O membro da elite gosta de repetir que "o Brasil é assim mesmo?", que "nada aqui funciona".
Com sua experiência turística, inveja Nova Iorque e Miami. Seu avô fazia o mesmo com Paris e Londres. Estes são os lugares da perfeição, daí "no exterior tudo é limpo"; "o povo é bem educado" e "as coisas funcionam".
É freqüente ouvir um bordão que denota o nível de conhecimento histórico dos seus defensores: "foi um erro expulsar na Colônia os franceses e holandeses".
Como a elite repudia a matriz ibérica, desconhece olimpicamente a tragédia da Argélia francesa e da Indonésia holandesa. Ou que, na América do Sul, a Guiana é um departamento da França e o Suriname uma ex-colônia holandesa.
O tradicional atraso brasileiro em produzir esteve acoplado com a modernidade do consumir. O fetiche da mercadoria importada subsiste no imaginário da elite.
A atual Daslu é a projeção da antiga rua do Ouvidor, no RJ, onde se falava francês. Na bacanal neoliberal de importações, compra-se salada verde direto da França no supermercado de luxo.
A elite aplaudiu quando Collor chamou o carro nacional de carroça. Com o risco da simplificação, a elite pratica o "por que não me ufano de meu país".
Tende a desqualificar o padrão de ser do povo brasileiro porque é produzido aqui mesmo. A idéia de fuga do país alimenta piadas do tipo "a melhor saída para o Brasil é o aeroporto" e "o último a sair do Galeão apague a luz".
O diagnóstico da elite, quando não atribui explicitamente a culpa a variáveis étnico-sociais, se reveste, hipocritamente, de uma proposta saneadora e ambígua: "é necessário educar o povo".
O general Figueiredo já disse que muitos recrutas não sabiam o que era pasta de dentes.
Quando focaliza a conjuntura, atribui dificuldades à incompetência dos governantes do momento, ou da corrupção inerente ao político, como gênero. Nossa elite deplora a corrupção. Considera-a endêmica.
Diz que condena a famosa Lei do Gerson, segundo a qual sempre é possível dar um jeito e levar vantagem.
Contudo, se tiver segurança em apagar com propina a notificação - ou seja, a certeza da impunidade fiscal - suborna o guarda de trânsito, gosta de sonegar impostos, recorre sem pudor ao "sabe-com-quem-está-falando" e exibe alguma carteira de prestígio.
Considera a lei "para os outros" e busca resolver seus problemas com auxílio de sua caderneta de contatos.
A informalidade, que é o espaço de estratégia de sobrevivência de um povo desempregado e subempregado, está sendo ocupada como biombo para a sonegação.
Cadeias complexas de produção com micro-sonegações de sobrevivência se articulam com núcleos empresariais fortes. A sacoleira complementa seu pequeno salário revendendo confecções; o camelô faz o mesmo.
Ambos se abastecem de atacadistas robustos e o tecido tem origem em empresas organizadas. A catação de lixo recupera vidros, metais, plásticos e papelão. Esta mineração da miséria engorda plantas industriais de grande porte.
É um escárnio a postura fiscal de nossa elite. O discurso da micro-pequena-média empresa prospera, pois o sobrevivente informal é denominado micro-empresário, que se emprega a si próprio.
São plenas as possibilidades de esconder riqueza de pessoa física sob a forma de pessoa jurídica. A viagem ao exterior, descontada como despesa jurídica. A gasolina do auto entra nos gastos da empresa.
O automóvel pode ser depreciado e reduzir o lucro tributável. Uma média cadeia de lojas tem vantagem em operar como um naipe de pessoas jurídicas, loja por loja. Transforma-se numa coleção de pequenas empresas.
A elite apóia, em matéria político-econômica, as recomendações neoliberais.
Nos últimos anos, ao consolidar a idéia de que o governo gasta muito, gasta mal e desperdiça recursos, fez prosperar a impunidade moral na sonegação, quase transformada em gesto cívico.
Concorda em comprimir os absurdos gastos públicos com o custeio da máquina, salários de funcionários em administração e políticas sociais. É favorável a reduzir a insuportável carga tributária.
Permanece em silêncio quanto ao gigantesco serviço de dívida pública, com juros reais repugnantes (os mais elevados do planeta) - afinal, é necessário controlar a inflação. Não diz nem condena a prática empresarial de empurrar os preços para cima.
Não alardeia o próprio protagonismo em sustentar e prosperar com a inflação: quem desfruta dos juros da dívida pública é a fração mais rica da elite, ou 20 mil famílias que, em 2006, dividirão pelo menos 80% de cerca de 160 bilhões de reais.
Em matéria de política econômica para controlar o apetite empresarial, alimenta-se a gula rentista. Tanto antes, quando da alta inflação, quanto agora, no dramático cenário de desemprego, a elite não assalariada vai muito bem, obrigada.
No momento, o jogo dos interesses volta-se para a Previdência. A Constituição de 1988 pensou o Orçamento de Seguridade incluindo aposentadoria justa, proteção à saúde e manutenção de grupos fragilizados, como portadores de deficiência e idosos não-contribuintes de famílias pobres.
Não poderia haver déficit no orçamento de seguridade, pois o constituinte, além da base contributiva da folha de salários, incorporou o lucro líquido das empresas e transações financeiras como possíveis contribuições.
Houve o desvio de Cofins e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para o Caixa Único do Tesouro e agora servem para cobrir parte dos juros da dívida pública.
Como para os interessados este território é sagrado, o núcleo estratégico faz a "denúncia" de déficit da Previdência e a elite abana a cabeça.
Não adverte que, sem geração de empregos, com a informalidade em expansão e o deslocamento das contribuições para o superávit primário, o déficit é produzido pelos neoliberais e o sistema financeiro tem gula em relação à Previdência privada.
Data: 02/08/2006
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