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Termômetro - Artigo de Carlos R. Spehar

Qual é o termômetro do ser humano? Entenda-se aqui a amplitude da palavra como aferição. O que ocorre no mundo atual nos faz arrazoar sobre os efeitos manada e o bumerangue. Parece que o primeiro é uma herança genética. Daí as grandes tendências cíclicas ao longo da história da humanidade


Carlos R. Spehar - Pesquisador da Embrapa Cerrados



Capacidade de aferir o que acontece ao redor e os efeitos sobre sua sobrevivência e bem-estar é uma característica que parece separar os humanos dos outros animais.

Entretanto, na vida real demonstram falhas nessa habilidade em decorrência de outros fatores intrínsecos à sua natureza. Resolvemos sintetizá-la na palavra termômetro, por ser oportuna.

Em todo o mundo, os termômetros indicam mudanças, conseqüências de ações que parecem impensadas. No mínimo, fica a impressão de que o entender sua ocorrência não altera a disposição de se preparar para enfrentá-las ou preveni-las quando são indesejáveis.

Insistir em relacionar a onda de calor que assola o verão no Hemisfério Norte e surpreende o inverno no Sul ao aumento da temperatura global, decorrente das emissões de gases parece redundância que aborrece.

Alguma parcela da população percebe, principalmente aquela que tem sido afetada. Mas, sobrevive, em sua maioria, mesmo sob situações inusitadas e não associa causa e efeito.

Que esses eventos sejam apenas o prenúncio, amostras das grandes mudanças preconizadas pelos cientistas, fica cada vez mais evidente. Entretanto, vive-se em clima de festa, como a que ainda reinava no Titanic, momentos antes da tragédia.

As grandes emissões de gases, como a dos Estados Unidos, maiores contribuintes e de economias emergentes como as da China, da Índia, e de outros países que seguem o modelo consumista, estão aumentando cada vez mais. Que elas venham a intensificar essas mudanças, é voz corrente.

Grandes calamidades como intensificação dos furacões, períodos de seca prolongada e chuva em excesso deverão se exacerbar com o aquecimento. São pequenos os aumentos de temperatura, quando considerados na média, que num primeiro momento não surpreendem. Porém, o seu efeito sobre uma grande massa como o Planeta Terra são cumulativos.

Só para exemplificar, quando geleiras ou grandes massas de gelo deixam gradativamente de existir por efeito da ação contínua dessas temperaturas, imensas quantidades de água, que estava imobilizada, passam a se movimentar.

A energia produzida pelo movimento, somada ao efeito de temperatura, contribui para acelerar o processo. Para sua reversão seria necessário haver uma glaciação, como as ocorridas no passado.

A última grande glaciação ocorreu no Holoceno, há cerca de 12.000 anos. De lá para cá, outras menores, cujo impacto foi menos desastroso e, talvez por isso, pouco estudadas quanto aos efeitos, deixaram marcas.

Não está perfeitamente claro, mas na Idade Média, temperaturas menores limitaram a produção de alimentos, predispondo as pessoas a doenças, intensificadas com a peste, causando retração na sociedade. As razões para "a idade das trevas" não foram apenas culturais ou religiosas.

De novo, fica a impressão de que o ser humano, ainda sabendo dos perigos, apenas reage diante da catástrofe iminente. Reluta em aceitar que as ameaças são reais. Como em artigo anterior (JC, 16-05-2006), parece buscar uma saída, nem que seja puramente imaginária, para burlar a fatalidade. O que mais estará por vir, antes que se tomem decisões importantes? Vale a pena ressaltar alguns pontos de como são peculiares as reações.

Na Inglaterra, situada em elevada latitude, com clima insular e temperaturas médias baixas, o aumento em alguns graus permite aos habitantes cultivar plantas subtropicais, as mesmas que poderão se tornar pragas, caso se mantenham essas elevações.

Não haverá o efeito do inverno para impedir seu crescimento. Sob dias longos vegetam abundantemente. Insetos-praga podem igualmente se beneficiar, expandindo a área de atuação.

As pessoas, em momento de clima festivo, pensam em vantagem que podem auferir da nova situação: cultivam, por exemplo, oliveiras como ornamentais nesses ambientes onde antes era impossível. Para o lazer, tinham de buscar o calor em outras paragens; agora ele vem até elas, como se fosse gratuito.

Assim, na sua constante fuga, o homem reluta em precaver-se, sem perceber que instabilidades climáticas causarão ruptura nos meios de produção, como a agricultura, fonte dos alimentos, fibra e energia - a base da sobrevivência.

Sem alimento, perde-se a poesia, a graça. Com fome é pouco provável que o ser humano explore o seu intelecto; frustram-se expectativas, retorna-se à barbárie. Porém, aqui reside um grande paradoxo.

Ainda que o alimento seja o mantenedor de sonhos, estes estão baseados na constante fuga, perene tentativa de evitar a fatalidade. Ou, é mais fácil imaginar e, conseqüentemente, investir em alvos supérfluos que contribuem para nos abstrair do que pensar no óbvio, sem o qual sucumbimos.

Em que se embasa essa visão catastrófica comprometendo os sonhos e o próprio futuro?

Os custos na produção de alimentos vão incrementar, com irrigação para suplementar os períodos de seca. O uso de fertilizantes e defensivos deve igualmente elevar para proteger plantas sujeitas a excessos de umidade ou estressadas por seca.

Chuvas irregulares, em forma de tempestades, destruirão os cultivos, da mesma forma que secas extremas. Ofertas instáveis de alimentos levarão a preços flutuantes, limitando o consumo. Os custos crescentes excluirão os agricultores, pilares da sociedade. Sem eles sucumbimos, juntamente com todos os supérfluos que alimentam o consumo.

Por mais que esses fatores intensifiquem seus efeitos, não há reação. Nada desses desastres parece afetar o cidadão global. Ele se orgulha de cultivar oliveira em seu jardim, ou, em pleno inverno, de desfrutar de uma praia. Em ambientes diferentes, se beneficiam do aumento da temperatura.

Qual é o termômetro do ser humano? Entenda-se aqui a amplitude da palavra como aferição. O que ocorre no mundo atual nos faz arrazoar sobre os efeitos manada e o bumerangue. Parece que o primeiro é uma herança genética. Daí as grandes tendências cíclicas ao longo da história da humanidade.

Que dizer do efeito Gaia, proposto por Lovelock? Segundo ele nosso planeta é como um grande sistema, em que nada está isolado. Sempre que ocorrem alterações em um local, surgem compensações para re-adquirir o estado de equilíbrio. Porém, há custos decorrentes do processo. É o efeito bumerangue.

Com o aumento das temperaturas globais, este ponto será atingido, em novos patamares de ameaças. O aumento populacional e a demanda por mais recursos se contrapõe a alimentos com menor qualidade e com maior custo.

O resultado será alimentação menos balanceada para uma grande parcela da população, com perdas da capacidade de trabalho e criatividade em sua plenitude, ainda que os dados atuais apontem em outra direção.

A longevidade tem aumentado, por ganhos nas áreas da saúde, alimentação e bem-estar. Por quanto tempo ainda teremos a perspectiva de viver mais? Como aferir quando a qualidade dos meios declina? Qual seu efeito no tempo?

No livro A Peste, Albert Camus, relata a reação de um médico diante dos casos da doença e dos escassos meios para debelá-la. Reluta em aceitar que ela virá, pois não quer se imaginar impotente para enfrentar o problema. Impotência significa admitir que é perdedor, aceitar a fatalidade. Talvez por isso repitamos a história, sempre traídos pela imaginação que nos diz, como se fosse a voz do instinto de preservação, "desta vez será diferente, melhor do que antes".

Nesse dilema mergulha o ser humano em seus sonhos, buscando evitar o confronto inevitável com o futuro, do qual não será parte integrante. Ao fazê-lo esquece do presente que está em suas mãos.

Nosso intuito de falar sobre o tema é alertar para a visão interior, a introspecção. Sem ela, perde-se o que mais se busca: a felicidade em sua plenitude. Essa busca pode ser aferida, com base nos rumos que tomamos. Essa aferição, independente de subterfúgios, começa em nós e define o nosso destino!


Data: 02/08/2006