Visões harmônicas - Artigo de Marcelo Gleiser
Há uma tradição na ciência que mistura razão e espiritualidade
Marcelo Gleiser - Professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover, EUA.
Sempre que reflito sobre a belíssima ordem que observamos no mundo, como cada coisa se origina de outra, sinto-me como se estivesse lendo um texto divino, escrito não com letras mas com objetos, que dissesse: Homem, amplia tua razão, para que possas compreender."
Assim escreveu Johannes Kepler, o grande astrônomo alemão que, no início do século 17, revolucionou a astronomia propondo que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares, como se acreditava por mais de 2.500 anos.
Em toda a história da ciência, poucos, talvez ninguém, expressaram de modo mais lírico a motivação pela pesquisa, a devoção ao "mistério" que rege a vida de um cientista.
Esse texto foi escrito em 1604, 51 anos após Copérnico ter publicado "Sobre as Revoluções das Esferas Celestes", onde propôs que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo.
Poucos deram atenção às idéias de Copérnico; a "revolução" copernicana se deu lentamente, e principalmente graças aos esforços de Kepler e Galileu, que viveu na mesma época na Itália.
Kepler era bem mais copernicano do que o próprio Copérnico: não só insistiu em manter o Sol no centro como obteve, pela primeira vez, as leis matemáticas que justificavam o arranjo dos planetas em torno do Sol - o Sol não era apenas o centro do cosmo por motivos estéticos, como sustentava Copérnico, mas, também, por razões físicas e teológicas.
Físicas porque Kepler propôs que uma força vinda do Sol era a responsável por manter os planetas em órbita à sua volta.
Aqui encontramos o germe da teoria da gravidade, que será desenvolvida por Newton ainda no mesmo século; teológicas porque Kepler acreditava num Deus geômetra, todo-poderoso em Sua criatividade, um Deus que construiu o cosmo segundo leis matemáticas precisas e que gerava a luz que iluminava aquele cosmo e tornava a vida possível.
Para este cientista alemão, o Sol era a morada divina, ao menos metaforicamente.
Mas é o aspecto lírico de Kepler que gostaria de explorar hoje. Sua relação com a ciência ia muito além de um mero trabalho, uma simples ocupação.
Era a vocação à qual se entregou com a devoção de um místico, com um fervor que jamais se abateu, mesmo durante momentos extremamente difíceis de sua vida:
a morte da esposa e vários filhos, as perseguições religiosas, o exílio forçado, a crítica dura de outros astrônomos e filósofos naturais, as privações da pobreza.
Kepler conviveu com tudo isso e mais a solidão do visionário que sabia que suas idéias estavam certas, mesmo se ninguém, ou quase ninguém, compartilhasse de suas idéias e opiniões.
Era a "belíssima ordem" do mundo que o motivava, a harmonia que acreditava existir em todas as coisas, o texto sagrado do livro da Natureza, escrito pelas mãos invisíveis de um Deus matemático.
Para Kepler, a ciência aproximava os homens de Deus, de Sua mente perfeita.
A missão daqueles que pensavam a ciência era então usar a matemática para aproximar, mesmo que imperfeitamente, a perfeição da mente divina.
Existe aqui uma tradição encontrada ainda hoje (e muito!) em ciência que mistura razão e espiritualidade, herdeira dos pitagóricos, os primeiros a propor que a matemática pode descrever o mundo, que é a língua comum entre Deus e os homens.
O próprio Albert Einstein se declarou discípulo dessa tradição, quando afirmou que "a mais profunda emoção que podemos experimentar é inspirada pelo senso do mistério. Essa é a emoção fundamental que inspira a verdadeira arte e a verdadeira ciência".
Não há dúvida de que Kepler concordaria com Einstein. Tanto um quanto o outro criaram inspirados por suas visões harmônicas.
Data: 07/08/2006
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