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Gilberto Câmara: "O segredo do Inpe é unir o avanço científico a missões de relevância. Produzimos informações de que a sociedade precisa"

O maior Instituto de Pesquisa do MCT completou 45 anos, no dia 2 de agosto

O seu diretor, o engenheiro de eletrônica Gilberto Câmara, foi entrevistado pelo "Inovação Unicamp". Ele cursou o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos; formou-se em 1979, e no ano seguinte foi contratado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde fez mestrado e doutorado em computação.

Vinte e cinco anos depois, em dezembro de 2005, assumiu a direção do Inpe - escolhido por um comitê de busca entre cinco candidatos.

Cearense de Fortaleza, 50 anos, Câmara é um apaixonado pelo Inpe: por seu caráter público, pela idéia de colocar à disposição gratuitamente as imagens da Terra obtidas pelos satélites, pelo trabalho do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), pela respeitabilidade das informações sobre o desmatamento.

Para ele, é a ligação do instituto com a sociedade, a utilidade de suas missões e de suas áreas de concentração que garantem o seu orçamento de R$ 150 milhões e a excelência alcançada.

"Num país tão carente e desigual", escreveu ele em seu discurso de posse, "o Inpe é um dos símbolos do que podemos alcançar quando a utopia coletiva triunfa sobre o imediatismo".

Na entrevista a seguir, concedida à jornalista Mônica Teixeira, o diretor fala com propriedade e conhecimento de causa - e paixão - do futuro do Inpe, da importância da inovação industrial e dos desafios a vencer.

Leia a entrevista:

Entre os institutos públicos de pesquisa, o Inpe é dos mais bem-sucedidos. Por quê?

- Há uma conjunção de fatores. O primeiro é o DNA da instituição. O Inpe foi criado há 45 anos, durante o regime militar, por um militar que também era pesquisador: Fernando de Mendonça. Ele tinha uma concepção elitista de ciência; só contratava os 25% melhores alunos de qualquer curso. Esse processo de seleção por qualidade formou a geração que montou o Inpe. As pessoas podiam fazer carreira aqui, porque a remuneração era boa - mesmo que se ganhasse um pouco mais na indústria, a diferença não era tão grande como hoje. O segundo aspecto é a noção de instituição orientada a missões, que também veio do dr. Mendonça, e foi sendo construída ao longo do tempo. Ao contrário da Universidade, que faz e deve fazer pesquisa de forma genérica, o Inpe faz pesquisa segundo missões. Uma missão importante desde o início tem sido a de sensoriamento remoto e observação da Terra. Em 1973, o Inpe começou a receber e a disseminar imagens de satélite; em paralelo, manteve a atividade de formação de pessoal. A pós-graduação, que continua até hoje, não foi criada como atividade fim da instituição, mas como meio de formar recursos humanos que o Brasil não tinha. Ao longo de sua história, o Inpe transformou sua competência em algo palpável sempre que o Brasil precisou. Por exemplo, gerou e interpretou os mapas que ajudaram o SOS Mata Atlântica a lutar pela conservação da Mata Atlântica - porque entendeu que o trabalho da organização era importante para o País. A mesma coisa aconteceu por volta de 1990, quando o Inpe foi chamado a montar um sistema para monitorar o desmatamento da Amazônia. Desde então, o monitoramento vem sendo feito sistematicamente. Os dados do Inpe são reconhecidos dentro e fora do governo. Em 1995, tivemos 29 mil km² de desmatamento; em 2003, foram 27 mil km². São números difíceis. Os governos Fernando Henrique e Lula não gostaram deles, mas não os questionaram. Não gostar dos números não significa não gostar do nosso trabalho.

Mas a respeitabilidade do Inpe é uma questão muito presente, não?

- Sim, mas o nível de tensão é permanente. Recentemente, passamos a colocar os mapas de desmatamento da Amazônia na Internet para evitar dúvidas. Qualquer um, seja governo, imprensa ou organização não-governamental, tem acesso a eles. Nossos usuários analisam os dados e criticam alguma coisa, mas em geral apóiam o trabalho que fazemos. Não foi uma coisa óbvia criar o CPTEC (Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos) no Inpe, na medida em que existia, e ainda existe, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Mas foi entendido que o nível de qualidade e modernização existente no Inpe era adequado à instalação de um centro avançado, que incluísse pesquisa e operação. O segredo do Inpe - se é que existe algum - é unir o avanço científico a missões de relevância para a sociedade. O Inpe sobrevive bem porque está diariamente produzindo informações de que a sociedade precisa.

Algo que parece ser vital para os Institutos de Pesquisa é conseguir manter a atividade de pesquisa. Como isso se garante dentro de uma instituição?

- Na década de 1990, tentou-se fazer com que os Institutos de Pesquisa passassem a conseguir recursos para sua própria manutenção a partir de seus "serviços" - o caso mais clássico é o do IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas]. Mesmo que a proporção fosse pequena - de 20%, por exemplo -, isso significaria a morte do Inpe. O retorno que a instituição dá para a sociedade seria reduzido. Há uma diferença enorme entre vender imagens de satélite e colocá-las de graça na Internet. As imagens do satélite sino-brasileiro - o Cbers -, a previsão do tempo e os dados da Amazônia estão disponíveis gratuitamente para qualquer um. Distribuímos 2.100 imagens do Cbers por semana, cem mil por ano. Cometeríamos um erro grave se as colocássemos à venda, porque restringiríamos o acesso a elas. Puniríamos a sociedade, que decidiu colocar US$ 100 milhões em cada satélite e pagou a conta, e também a instituição, que privilegiaria o imediato e não conseguiria investir nem avançar. Essa idéia de colocar os institutos no mercado apareceu quando os governos, em geral, assumiram sua incapacidade de garantir qualidade e eficiência - não foi só a questão do orçamento que contou. Nos EUA, o país do mercado, as grandes agências de pesquisa não têm essa política. A Nasa tem a totalidade de seus recursos oriundos do orçamento do governo. Não passa na cabeça do presidente americano que a Nasa possa se desviar de seus objetivos de Estado para fazer serviços rotineiros para empresas.

No caso do Inpe, nunca faltou dinheiro federal?

- O orçamento do Inpe para 2006, sem pessoal, é de R$ 150 milhões. É claro que temos condições de gastar mais, mas primeiro precisamos gastar direito naquilo que fazemos. Em relação a outros institutos, temos conseguido manter um orçamento que nos permite dar andamento aos programas. Nosso desafio, para os próximos anos, é ampliar o orçamento mantendo a mesma qualidade de execução que temos hoje.

O senhor acredita que o governo garante esses recursos para o Inpe porque o instituto tem essa ligação que o senhor descreveu com a sociedade?

- Sim. O Inpe tem mais dinheiro porque funciona e funciona porque tem mais dinheiro. O que importa para nós é o foco. Fazemos poucas coisas que nos dão um enorme retorno: manter o programa de satélites, a previsão do tempo, o acompanhamento do desmatamento da Amazônia, a distribuição gratuita de imagens, o software livre de geoprocessamento. Por isso, não podemos nos descuidar de fazê-las corretamente. Essas coisas são 95% do que a sociedade percebe da instituição - e são 95% do nosso orçamento. É isso que distingue um instituto de pesquisa de uma Universidade. Não podemos querer fazer tudo, temos de ser extremamente seletivos.

Como o senhor faz o foco ser mantido?

- Essa é uma tarefa diária. Tenho de mostrar todos os dias aos pesquisadores que a pós-graduação é imprescindível para o Inpe existir, mas não é sua atividade fim. A pesquisa acadêmica desinteressada e autocentrada é a vida da Universidade, que é uma instituição medieval na sua forma e na sua essência. Um instituto de pesquisa não pode ceder à tentação de ser medieval. O Inpe é orientado a missões, por isso precisa ser centrado e focado.

No orçamento de R$ 150 milhões do Inpe estão incluídos recursos do CNPq e da Fapesp?

- Se incluirmos esses recursos, temos mais uns R$ 10 milhões ou R$ 12 milhões. O orçamento, então, chega a R$ 160 milhões. Destes recursos, gastamos 60% em contratos industriais associados ao programa espacial, 20% na manutenção da nossa infra-estrutura - que é bem grande -, 10% em contratos de mão-de-obra para manter atividades operacionais e 10% em projetos de P&D.

Quantos pesquisadores existem no Inpe?

- Temos cerca de duas mil pessoas - entre elas, 300 doutores e 400 mestres. Esse corpo está dividido de maneira desigual dentro da instituição. A área de ciências espaciais é essencialmente acadêmica, enquanto a de engenharia tem uma tendência forte à tecnologia. Na parte de previsão de tempo existe uma mistura de pesquisa e operação: além de manter o sistema operando é preciso melhorá-lo, e isso requer pesquisa. A situação é semelhante na parte de observação da Terra. A área de rastreio e controle é praticamente toda operacional. O LIT [Laboratório de Integração e Testes] é um laboratório tecnológico - o maior do Brasil e um dos maiores do Hemisfério Sul na sua classe.

O LIT não é uma fonte de receita significativa?

- Não. O LIT gera em torno de R$ 3 milhões por ano - é pouco, isso paga apenas parte de sua manutenção. Se fosse transformado em fonte de receita, perderíamos a flexibilidade para interromper um serviço remunerado quando necessário. Isso aconteceu há pouco: quando foi decidido que nosso astronauta voaria na Soyuz com os russos, o pessoal do LIT teve de parar tudo o que estava fazendo e trabalhar um mês inteiro sem intervalo para qualificar os experimentos que foram realizados no espaço.

O senhor mostra uma face muito positiva do Inpe.

- É minha obrigação mostrar a face positiva, mas existem problemas. Salário é um problema sério. Hoje, estamos com salários muito aquém do razoável. Outro problema sério é a falta de renovação de pessoal. A idade média dos profissionais do Inpe é 47 anos. Temos enorme carência de jovens cientistas e engenheiros para substituir a geração que criou o Inpe, que está se aposentando. Hoje, precisamos contratar 60 pessoas por ano pelos próximos dez anos, apenas para manter o quadro atual.

Como deve ser a relação do Inpe com as empresas?

- Os grandes problemas que enfrentamos são o tamanho relativo dos contratos para as empresas e o nível de diversificação que elas podem ter. Ao contrário de outros países, não existe nenhuma sinergia entre os programas aeronáutico, de defesa e espacial. Poucas empresas fabricam ao mesmo tempo para a Embraer e para o Inpe. A Embraer estabeleceu uma estratégia que privilegia sua capacidade de projetar, montar e comercializar aeronaves. Eles são hoje dependentes de tecnologias críticas fornecidas por empresas americanas. A produção de componentes para aviões da Embraer, de maior valor agregado e de maior conteúdo tecnológico, é feita fora do Brasil. Foi essa dependência por componentes americanos que permitiu aos EUA vetar a venda de aviões da Embraer para a Venezuela. Isso complica muito a relação entre os programas aeronáutico e espacial, pois os melhores spin-offs do programa espacial são justamente as tecnologias críticas que a Embraer optou por comprar fora do Brasil. No caso de defesa, temos uma situação semelhante. O Brasil perdeu a vontade de investir em tecnologia de defesa. Hoje, muitos dos programas de defesa do Brasil envolvem simplesmente a compra de tecnologia estrangeira. Veja-se o caso do Sivam [Sistema de Vigilância da Amazônia]. Gastamos US$ 2 bilhões na compra de soluções caríssimas, que teriam custado muito menos se tivessem sido desenvolvidas no Brasil. Todos os subsistemas do Sivam na parte ambiental, como softwares e radares imageadores, têm fornecedores no Brasil que teriam feito mais por menos. Se o programa de defesa compra ao invés de desenvolver localmente, reduz muito o impacto dos spin-offs do programa espacial. Hoje, nosso melhor exemplo de spin-off é a Opto Eletrônica, de São Carlos, que é muito forte no setor de ótica médica, e produz câmeras de imageamento para o Inpe. O Inpe representa hoje 25% do faturamento da Opto, uma proporção muito adequada a nosso ver. O ideal é não ter nem empresas das quais sejamos menos de 5% do faturamento, nem mais de 50%. Devido à falta de sinergia entre os setores espacial, aeronáutico e de defesa, ainda enfrentamos dificuldade em manter essa política para todos os nossos contratados.

Existem outras empresas?

- Temos várias empresas de médio porte: a Aeroeletrônica, de Porto Alegre, que tem bastante competência local, apesar de ser subsidiária do grupo israelense Elbit, fornecedora de defesa; a Mectron, de São José dos Campos, totalmente nacional; a Gisplan, uma empresa do Rio que faz estações de recepção e geração de imagens, e que é uma das poucas que faz software. A Gisplan, por exemplo, vinha de uma área correlata, a de sistemas de tecnologias de processamento de imagens em geral.

Se
houvesse sinergia entre os programas de defesa e espacial, do lado público, e da Embraer, a capacitação tecnológica adquirida pelas empresas ao fornecer para o Inpe estaria garantida?

- Sim, e poderia ser disseminada competitivamente. Esse é um dilema estratégico para o Brasil. Historicamente, as políticas de C&T brasileiras são compartimentadas. Não existe, por exemplo, um projeto para que, ao mesmo tempo, a Embraer e o programa espacial ganhem os benefícios de se desenvolver software embarcado no Brasil de alta qualidade. O Inpe tem de encontrar espaços de sinergia entre os programas espacial, de defesa, aeronáutico e de informática. Isso é um dos desafios para a sobrevivência da instituição - o problema é que esse desafio não tem dia nem hora marcada para acontecer, não tem campo, não tem regras; é muito difuso.

Se houvesse sinergia, talvez as empresas pudessem arcar com o custo de inovar.

- Ou então elas poderiam diluir o custo, como é feito nos EUA. O fato de haver um programa de contratos industriais não significa que todos eles estejam fazendo inovação. Além de buscar os contratos é preciso buscar as bases para que haja inovação e sinergia. É um balanço extremamente delicado. Não adianta só contratar a Opto; é preciso garantir que o que ela está fazendo seja bom e que a instabilidade do fluxo de pagamentos não quebre a empresa. Outro aspecto desafiador são os mecanismos de financiamento do setor espacial. Hoje, eles são todos orçamentários, vindos diretamente do Tesouro. Apesar de ter sido criado há quatro anos, o mecanismo de fundos setoriais, que deveria gerar um novo patamar de investimento, focado na inovação e na indústria, ainda não está consolidado, ainda precisa ser colocado em prática - e de forma um pouco diferente daquela pela qual a comunidade científica está brigando. Parte da comunidade científica está brigando para que haja mais dinheiro para a pesquisa acadêmica tradicional, e não para fomentar a inovação na indústria. O MCT e a Finep têm lutado muito para evitar que isso aconteça e para que os fundos setoriais fomentem inovação e patentes e não apenas mais papers.

O que o senhor desejaria?

- Que os fundos setoriais passassem a financiar inovação na indústria, por meio de contratos principalmente do governo. O acesso aos fundos deveria prioritariamente ser da indústria; os grupos acadêmicos deveriam participar quando sua competência fosse necessária à indústria. Os fundos setoriais foram criados para tirar dinheiro do setor produtivo e devolvê-lo a ele.

Esse é um desafio superável?

- Sim. Há um amadurecimento - embora muito mais lento do que gostaríamos - de discurso. O discurso está começando a ficar afinado, na medida em que se entendeu que a verdadeira inclusão social só é conseguida com a melhoria da capacidade produtiva e intelectual do Brasil, e não por meio de programas assistencialistas. Existe uma conquista paulatina no sentido de que o investimento em inovação é o que dá as bases para o futuro. Exemplos como a auto-suficiência em petróleo deram ao governo o sentimento do que funciona e do que não funciona.

Qual é a peculiaridade do lugar dos Institutos de Pesquisa públicos, a partir da experiência do Inpe?

- A experiência do Inpe mostra a necessidade de foco; de investimento constante em melhorias - no nosso caso, mantendo o programa de pesquisa e pós-graduação -; e da manutenção do investimento público como fonte básica do instituto de pesquisa. É um erro tentar fazer com que os institutos se auto-sustentem numa sociedade que é tecnologicamente atrasada e cujos processos produtivos têm a tendência de serem importados e não feitos aqui. O Inpe mostra a resistência à lógica de curto prazo, a manutenção da capacidade de ter idéias novas e continuar avançando e o fato de a sociedade ter consciência de que a instituição existe. Estive recentemente nos EUA e fiz uma apresentação sobre o CBERS no Office of Science and Technology Policy - o MCT deles. Eles ficaram impressionados com nossa política de disseminação de imagens. Os americanos vendem uma imagem de satélite por US$ 500. No melhor ano, venderam 18 mil imagens, enquanto nós estamos distribuindo cem mil - eles quase caíram de costas. Aqui, o tempo médio de download é de nove minutos e metade dos usuários são companhias privadas. A minha proposta é de que todos os dados de observação da Terra estejam disponíveis gratuitamente na Internet, que haja um consórcio de satélites. Todos os meus interlocutores nos EUA foram extremamente favoráveis. Como benefícios adicionais de uma política aberta nesse sentido, o Brasil torna-se um jogador mundial, o programa espacial brasileiro foca-se em um objetivo público e aberto, acaba-se com a tentação de querer vender serviços para ganhar migalhas e a necessidade de investimento público é perenizada.

Por que o senhor quis ser diretor do Inpe?

- Primeiro, porque me agrada o fato de o processo de escolha ter sido correto e bem conduzido. Segundo, porque tenho uma visão de longo prazo do que deve ser o programa espacial e de quais são os desafios. O que me move é a obsessão em tentar fazer com que o programa espacial ganhe vínculos no Brasil - a questão da distribuição de dados é uma parte disso - e ganhe respaldo internacional, porque isso ajuda muito a sustentar o programa aqui e a fortalecer os investimentos públicos e as empresas brasileiras. A tentativa de liderar uma instituição que combine inovação industrial e manutenção do espírito público é o que me motiva. Isso é difícil, mas é um desafio que me agrada.


Data: 09/08/2006