topo_cabecalho
O duelo do conhecimento - Artigo de João de Fernandes Teixeira, sobre o livro "Brainstorms", de Daniel Dennett

Obra central da filosofia cognitiva, aborda os limites entre mente e cérebro

João de Fernandes Teixeira - Professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos


Antes tarde do que nunca. Finalmente chega ao público brasileiro a tradução do livro mais importante do filósofo americano Daniel Dennett: "Brainstorms - Ensaios Filosóficos sobre a Mente e a Psicologia" (ed. Unesp, trad. Luiz Henrique de Araújo Dutra, 432 págs., R$ 58).

Publicado no início da década de 80, apresenta sua teoria da mente -que servirá de fio condutor para toda a sua produção filosófica posterior.

Embora a ordem na qual foram publicadas as traduções brasileiras de Dennett não deixe transparecer, há dois temas centrais na sua filosofia: mente e consciência.

Enganam-se aqueles que supõem serem suas maiores preocupações a evolução ("A Perigosa Idéia de Darwin"), a cognição animal ("Tipos de Mentes" [ed. Rocco]) ou até, mais recentemente, sua reflexão sobre a natureza da religião, em obra ainda não traduzida ["Breaking the Spell"].

O Dennett de "Brainstorms" é o discípulo e o herdeiro das teorias do britânico Ryle e do americano Quine.

O título deste livro já é, em si, instigante. "Brainstorm" é uma palavra difícil de traduzir e designa a surpresa acachapante do insight.

Ensaios intempestivos

E, de fato, o que encontramos ao percorrê-lo são ensaios intempestivos sobre temas diversos da filosofia da mente e da psicologia, passando pelo sonho, pela consciência, pela crítica impiedosa de Skinner [psicólogo americano, expoente do behaviorismo, 1904-1990, de quem Dennett quer, estrategicamente, manter distância], além de muitos outros.

Há dois ensaios que condensam a originalidade e a ousadia da teoria da mente de Dennett. O primeiro é "Código Cerebral e Escritura Mental" (por onde sugiro que o leitor deva começar).

Encontramos aqui uma nova abordagem do problema mente-cérebro. Na ótica de Dennett, enfrentamos a tarefa de tradução entre duas linguagens: o código do cérebro e o vocabulário psicológico.

Realizá-la tem sido uma vã e inútil expectativa dos filósofos da mente.

Quine já teria demonstrado que a tradução de uma linguagem desconhecida é sempre sujeita à indeterminação e resiste a qualquer tentativa de estabelecer uma correspondência "um-a-um" entre seus termos.

O mesmo ocorreria entre tempestade elétrica (código cerebral) e estados mentais ou entre o software de um computador e os estados de seu hardware (expressos na chamada linguagem de máquina, a seqüência de 0 e 1).

Começar uma teoria da mente tentando resolver o problema mente-cérebro é o mesmo que apostar na existência de uma pedra de Roseta inalcançável.

Com isso, desmonta-se um mito que ainda habita o horizonte de filósofos e, mais recentemente, dos neurocientistas, qual seja: o mito do neurocriptógrafo, do construtor de um cerebroscópio, que, se ligado ao cérebro, leria seus pensamentos.

Uma pena para os que conduzem CPIs e também para os delegados de polícia que poderiam, usando esse aparelho, economizar horas a fio em interrogatórios e acareações.

Ficção útil

Ora, se a mente não é redutível ao cérebro, o que se pode dizer acerca de sua natureza?

O mental é uma ficção útil, muito mais um artifício ou construção nossa que uma realidade tangível sempre dotada de correlatos neurais. Esse é o tema do ensaio "Sistemas Intencionais", que também recomendo ao leitor.

Nele, Dennett sustenta também que o mental não é nem privilégio nem exclusividade dos humanos.

Robôs e outros sistemas artificiais podem ter mentes, desde que seu comportamento seja tão complexo que, para descrevê-lo, tenhamos de nos valer de vocabulário psicológico, ou seja, atribuir a eles intenções, crenças, desejos etc.

O vocabulário psicológico é designado por Dennett como "psicologia popular".

Adotá-lo, ou seja, valer-se da psicologia popular para tornar comportamentos de humanos ou robôs inteligíveis, constitui uma poderosa estratégia evolucionária para facilitar nossa sobrevivência e convivência com seres que exibam comportamentos complexos - uma estratégia que situa o mental mais nos olhos do observador do que no mundo, o que lhe confere uma realidade virtual.

Publicar esta tradução é um passo vital para a filosofia da mente no Brasil, onde ainda engatinhamos nessa área, possivelmente por preconceitos eurocentristas.

Parabenizo o tradutor - o estilo de Dennett é permeado por chistes e trocadilhos, o que torna sua tradução um desafio.


Data: 21/08/2006