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A vingança dos nerds

Criador da realidade virtual, Jaron Lanier ataca o "maoísmo digital" dos pesquisadores do Vale do Silício, nos EUA

O cenário descrito lembra algumas das piores previsões da ficção científica. Na contramão do senso comum ligado à idolatria a novas tecnologias, soa um alarme dentro do próprio meio onde esse futuro é gerado.

Para Jaron Lanier, criador da realidade virtual - em 1987 - e um dos principais pesquisadores de tecnologia do Vale do Silício, em dez anos a nova filosofia da informática da região terá "dominado o mundo", e o ser humano terá sua importância reduzida.

Simplificando esse sistema "computacional": não há mistérios no mundo, que é apenas um grande computador, e a função dos seres humanos não é outra senão a de otimizar essa máquina.

Intelectual apocalíptico, o doutor pelo Instituto de Tecnologia de Nova Jersey, músico e colunista da "Scientific American" explicou, em entrevista à "Folha de SP", que a mudança que denuncia ainda não é prioridade nas discussão do mundo atual.

O problema, diz Lanier, 46, é que tal forma de pensar está crescendo e sendo aceita sem questionamentos.

Exemplo dado por Lanier - segundo o qual já se fala em desestímulo ao estudo da música, que no futuro seria feita apenas por máquinas - são as ferramentas de informação da Internet, como a Wikipedia.

"Se expuséssemos a Wikipedia como idéia - e não como tecnologia -, quem poderia achar que um livro onde todos podem escrever e que não tem um autor responsável pelo todo poderia ser uma boa idéia?"

Para ele, que cunhou o termo "maoísmo digital" a partir do exemplo citado, o que complica o problema é a falta de senso crítico das pessoas, o que as leva a considerar a enciclopédia uma espécie de Bíblia.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

- Por que o sr. se diz preocupado com a propagação essa concepção tecnológica do mundo?

Lanier - O que precisamos entender é que a cultura do Vale do Silício está começando a "controlar o mundo" (risos). É uma coisa gradual, mas que está acontecendo. As pessoas de lá vêm de um grupo de pessoas muito orientadas para o pensamento tecnológico. Do ponto de vista deles, os seres humanos não importam. Na verdade, nem sequer existem: são feitos de subconsciência e cérebro, e a sociedade é uma coleção de subconsciências. Tudo é apenas uma computação gigantesca, e a designação de uma pessoa é um rótulo arbitrário que se coloca numa parte desse hardware gigante. Há alguns dias, conversando com alguns dos executivos mais influentes do Vale do Silício, ouvi isso: "Em dez anos, o uso de algoritmos da Internet, com toda a informação de serviços como o Orkut, o Google, poderemos criar automaticamente músicas muito melhores de que qualquer coisa que uma pessoa pudesse inventar. É errado ensinar música a crianças porque os computadores vão ser melhores nisso, então, será um ensino obsoleto".

- O "maoísmo digital" é um exemplo disso? De que se trata?

Lanier - Sempre soubemos que há benefícios em ter um grande número de pessoas participando das decisões. É por isso que há Bolsas de Valores, eleições, democracia, e não há nenhuma controvérsia quanto a isso. Muito recentemente, entretanto, houve uma mudança. Agora há uma idéia de que sabedoria individual não importa. O coletivismo digital, que é o caso da Wikipedia, se expressa na idéia de que a coletividade sempre será mais inteligente de que os indivíduos. O que se está dizendo é que a mente humana não mais importa.

- Falta a criatividade dos seres humanos...

Lanier - Se falarmos com alguém com essa visão centrada na informática, ele responderá que é tudo muito simples, é preciso apenas ajustar alguns algoritmos para incluir produções menos comuns, para que o computador invente como os grandes gênios da história da música ou do pensamento. A questão fundamental acaba nos levando às bases da filosofia. Se se acredita que temos uma compreensão geral do que acontece na realidade e não há mais mistérios -a realidade seria um computador gigante, e o sentido da vida seria apenas o de otimizá-lo-, então todas as considerações sobre a importância do ser humano se tornam desimportantes.

- Não é um tanto catastrófico achar que esse pensamento irá dominar o mundo?

Lanier - Claro que é um tema que ainda tem pouca influência no mundo atual. É mais importante falar em fundamentalismo religioso, em temas do atual capitalismo de corporações... Mas falo disso para antecipar a discussão que se dará em dez ou 15 anos, quando a informática será um tema tão importante quanto esses outros.

- O que torna a ideologia tão sedutora?

Lanier - Quando as idéias são embaladas como tecnologia, as pessoas estão mais suscetíveis a aceitarem-nas sem questionamento do que quando são propostas abertamente como ideologia. Se deixássemos de lado a tecnologia e mostrássemos apenas a idéia - por exemplo, escrever um livro, uma enciclopédia, de que todo mundo pudesse participar, chegando-se, assim, a uma "obra perfeita" -, soaria completamente ridículo em qualquer lugar do mundo. Mas, como se trata de algo na internet, embalado como tecnologia, as pessoas acham genial. Fui parte desse mundo digital por muito tempo e ainda acho que a influência da tecnologia na vida das pessoas foi positiva em sua maior parte. Essa nova ética anti-humana, que está crescendo, é o que pode virar tudo de cabeça para baixo.


Data: 21/08/2006