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Patente ou paciente? Como Washington usa acordos comerciais para proteger medicamentos

Os negociadores americanos nos acordos bilaterais visam restringir cada vez mais a capacidade dos países em desenvolvimento de produzir genéricos contra doenças como a Aids

William Aldis estava agitado. Como chefe da Organização Mundial de Saúde na Tailândia, ele sabia que as autoridades tailandesas estavam recebendo seus homólogos americanos na cidade de Chiang Mai, no norte, para negociar o que para muitos poderia parecer um objetivo totalmente válido:

um acordo bilateral de livre comércio. Mas ele viu os perigos e decidiu divulgar suas opiniões.

As "vidas de centenas de milhares de cidadãos tailandeses" seriam postas em risco se os negociadores aceitassem as exigências de Washington de maior proteção aos direitos de propriedade intelectual das empresas farmacêuticas, ele escreveu num artigo para um jornal de Bangkok.

Isso foi em janeiro. No final de março, o dr. Aldis, com apenas 16 meses num cargo que normalmente duraria quatro anos, foi subitamente transferido para um emprego na Índia, levantando temores na Tailândia sobre os esforços dos EUA para limitar a independência dos profissionais de saúde pública da OMS.

A disputa pôs em evidência as tensões geradas por uma diretriz de Washington para reforçar a aplicação de patentes e a proteção aos direitos de propriedade intelectual em todo o mundo - uma campanha apoiada por alguns dos poderosos laboratórios que produzem remédios contra Aids, mas rejeitada por muitos especialistas de saúde pública, grupos de pacientes e países em desenvolvimento.

De um lado, afirma-se que o reforço da proteção de patentes manterá os preços dos medicamentos altos demais para suprir as necessidades dos pacientes no mundo em desenvolvimento.

Do outro estão os que insistem que a inovação está ameaçada e que o verdadeiro problema dos países pobres é a falta de instalações hospitalares e pessoal médico.

Amplamente discutida na conferência mundial sobre Aids em Toronto na semana passada, a questão levou a uma petição assinada pela Médicos Sem Fronteiras, a organização médica de auxílio, e dezenas de outros grupos pedindo a moratória dos dispositivos de livre comércio que ameaçam o acesso aos tratamentos.

No documento, pede-se que os governos "protejam o público das potenciais conseqüências negativas de acordos comerciais bilaterais e regionais para a saúde pública".

A polêmica apresenta dificuldades especiais para a OMS, que se prepara para uma eleição altamente política de seu novo diretor-geral, depois da morte em maio de Lee Jong-wook. Uma assembléia da organização deverá escolher um sucessor em novembro.

O dr. Aldis, em seu artigo publicado no "Bangkok Post", em língua inglesa, e intitulado "Pode ser uma questão de vida e morte", advertiu que as concessões desejadas por Washington poderão prejudicar a produção de medicamentos genéricos na Tailândia, especialmente os necessários para tratar os 600 mil tailandeses portadores do HIV.

"O preço das drogas de segunda e terceira gerações contra HIV continuará exorbitantemente caro", ele escreveu, acrescentando que o governo tailandês - que foi elogiado por seu empenho em fornecer remédios contra Aids para todos os que necessitam - poderia ver seu sistema de saúde falido.

Depois da publicação do artigo, Kevin Moley, então diretor da representação permanente dos EUA na ONU em Genebra, procurou Aldis. Verbalmente e por escrito, ele registrou o desagrado de Washington pelas declarações do representante da OMS em Bangkok.

Uma autoridade americana inteirada das discussões diz: "Não é adequado alguém na folha de pagamento da OMS criticar uma negociação bilateral". Mas a súbita transferência do dr. Aldis (que é americano) causou alarme na Tailândia.

"Se a pressão política externa pode influenciar uma organização que supostamente se dedica à saúde das pessoas, realmente é um mau sinal", diz Jiraporn Limpananont, professor de ciências farmacêuticas na Universidade Chulalongkorn de Bangkok e especialista em direitos de propriedade intelectual. "Será uma ameaça para as populações do mundo todo, e não só para os tailandeses."

Na origem, a disputa envolve os esforços americanos para ampliar as proteções de patentes estabelecidas nos pactos comerciais multilaterais existentes.

Sob o acordo de "aspectos da propriedade intelectual ligados ao comércio" (Trips) da OMS, os países podem desconsiderar as patentes de medicamentos emitindo uma "licença compulsória" para fabricar ou importar versões copiadas mais baratas, se considerarem que há uma emergência de saúde pública.

Mas uma decisão do Congresso americano exige que seu representante comercial pressione por maior proteção dos direitos de propriedade intelectual em todo o mundo, através de acordos de livre comércio bilaterais (FTA).

Depois de assinar acordos com economias pequenas como as de Omã, Jordânia, Marrocos e Bahrein, Washington voltou sua atenção para parceiros comerciais mais importantes como Malásia e Coréia do Sul, além da Tailândia.

Esses esforços receberam um impulso adicional com a expiração no próximo ano da autoridade de promoção comercial "via rápida" da Casa Branca, que permite que o governo negocie acordos comerciais que o Congresso deve então aprovar ou rejeitar totalmente.

A suspensão indefinida no mês passado da rodada de negociações de Doha da Organização Mundial do Comércio também reenfocou a atenção dos EUA em seus acordos bilaterais.

Nas negociações com a Tailândia, refletindo termos de acordos semelhantes, os negociadores americanos exigiram que as autoridades dessem às companhias farmacêuticas extensões de patentes "compensatórias" no caso de atrasos "irrazoáveis" para conceder patentes de medicamentos ou aprovar um medicamento para venda no mercado.

Elas também tentaram conseguir cinco anos de "exclusividade de dados", o que impediria os fabricantes de medicamentos genéricos de usar os dados de testes clínicos ou outras informações científicas de outra companhia para provar a segurança e a eficácia de um remédio depois de seu ingresso no mercado.

Essa proteção de dados teria repercussões particulares para a Tailândia, onde alguns remédios contra Aids não foram patenteados porque anteriormente as empresas consideraram o potencial do mercado pequeno demais.

Finalmente, os EUA pressionaram a Tailândia para adotar uma linguagem mais específica sobre os termos e condições sob os quais ela praticaria o licenciamento compulsório de novas drogas, embora Washington tenha prometido emitir uma "carta colateral" esclarecendo que os termos restritivos no acordo de comércio bilateral eram consistentes com a declaração de Doha de 2001 sobre Trips e saúde pública.

Achara Eksaengsri, vice-diretora de pesquisa e desenvolvimento da Organização Farmacêutica do Governo da Tailândia (GPO), diz que as condições bilaterais teriam um impacto altamente negativo sobre a capacidade da Tailândia de cumprir sua promessa de fornecer medicamentos para os pacientes de Aids.

A GPO produz atualmente versões genéricas de drogas anti-retrovirais "de primeira linha", mais antigas, para cerca de 80 mil pessoas e espera ter 150 mil sob tratamento dentro de dois anos.

Ela também pretende oferecer tratamento genérico "de segunda linha" usando drogas mais sofisticadas e mais novas para pacientes conforme necessário, objetivo que seria prejudicado se aceitasse a proteção da "exclusividade de dados".

"Temos de planejar como o orçamento do governo pode sustentar os pacientes tailandeses", ela disse.

Em contraste, as companhias farmacêuticas ocidentais dizem que as proteções são necessárias para garantir que tenham um retorno adequado para incentivar futuras pesquisas e desenvolvimento de remédios.

Elas também afirmam que nos países mais pobres mais afetados pela Aids elas fizeram grandes esforços para ajudar, oferecendo descontos e cedendo ou não aplicando patentes.

Harvey Bale, diretor da Federação Internacional de Associações de Fabricantes Farmacêuticos, diz que seus membros tornaram-se bodes-expiatórios de problemas muito mais amplos que prejudicaram o tratamento da Aids no mundo em desenvolvimento.

"A
questão é conseguir o acesso das pessoas às drogas", ele diz. "Ainda estamos muito aquém da meta da OMS de 3 milhões em tratamento até 2005 e a promessa de acesso universal até 2010. O problema básico é infra-estrutura, acessibilidade do pessoal médico treinado, clínicas e diagnósticos."

Oficiais do comércio dos EUA dizem que os dispositivos que pretendem incluir em seus acordos bilaterais na Tailândia e outros países não prejudicarão a saúde.

"Não há evidências de que o FTA prejudicou o acesso a drogas ou a indústria farmacêutica local", disse um deles.

"Desde que assinou seu FTA com os EUA, a Jordânia teve um grande aumento no número de lançamentos de produtos farmacêuticos inovadores, enquanto seu setor de genéricos prosperou."

Mas a Jordânia tem pequena influência no mercado internacional de medicamentos.

O grande choque é com países maiores, como China, Índia e Brasil, que oferecem mercados potenciais mais lucrativos para os laboratórios, mas que também têm importantes indústrias de genéricos que ameaçam os laboratórios ocidentais se as regras de patentes não forem endurecidas.

De suas perspectivas diferentes, os laboratórios ocidentais, os produtores de genéricos e os ativistas se concentram particularmente na recém-desenvolvida segunda linha de drogas anti-retrovirais, ainda sob patente.

A demanda por estas deverá crescer acentuadamente nos próximos anos, conforme os pacientes desenvolvem resistência às terapias de primeira linha.

Sob pressão das florescentes companhias farmacêuticas locais, interessadas em inovação assim como na demanda internacional, a Índia endureceu no ano passado sua legislação de patentes.

A geração anterior de tratamentos anti-Aids de primeira linha não tinha proteção de patentes, permitindo que companhias como Cipla e Ranbaxy copiassem drogas ocidentais, oferecendo-as por menor preço no mundo em desenvolvimento.

Para
as drogas de segunda linha isso vai ser mais difícil.

O teste chave do novo regime é o Kaletra, um medicamento desenvolvido pelos Laboratórios Abbott dos EUA.

A companhia já teve um grande choque com o Brasil, que no ano passado ameaçou emitir uma licença compulsória para que um laboratório estatal pudesse produzir o Kaletra.

Isso se deveu a temores de que as compras para seu ambicioso programa de tratamento anti-Aids seriam caras demais.

"Nós apoiamos a legislação Trips, mas consideramos a propriedade intelectual o centro do que fazemos", disse Jennifer Smoter, do Abbott.

Pedro Chequer, ex-diretor do programa nacional anti-Aids do Brasil na época, diz que as autoridades foram submetidas a um intenso lobby nos mais altos escalões:

"Eu soube de encontros, telefonemas do Senado, do Congresso e da Casa Branca, com ameaças de retaliação direta".

O Executivo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente recuou da emissão da licença compulsória, em troca do acordo da Abbott de um contrato de seis anos de fornecimento do medicamento por um preço menor enquanto preservava suas patentes.

Esse é exatamente o tipo de acordo que poderia ser ameaçado pelos FTAs. "O licenciamento compulsório é uma arma", diz um especialista em comércio.

"Os países em desenvolvimento podem dizer: 'Nós vamos fazer isso se vocês não reduzirem o preço'. É uma boa arma para se usar, uma coisa valiosa de se ter."

A dra. Achara diz que a Tailândia poderá requerer uma licença compulsória daqui a três ou quatro anos para o Kaletra para seu GPO.

Mas um acordo comercial bilateral Tailândia-EUA cujas negociações estão em suspenso - provavelmente até depois de outubro, quando o país deverá ter eleições gerais - enfraqueceria seu poder, ela teme.

Bale adverte que a quebra de patentes pode ter conseqüências inesperadas.

Ele sugere que o preço, a qualidade e a capacidade dos fabricantes locais podem não cumprir os objetivos desejados.

Inversamente, Jim Kim, um ex-diretor de HIV/Aids na OMS e ainda ativo no combate à doença, diz: "Os laboratórios estão dizendo que seria melhor os países usarem seus esquemas de preços com descontos. Mas já estamos tendo problemas de fornecimento, enquanto a demanda pelos remédios cresce constantemente".

Na prática, as licenças compulsórias até agora foram emitidas raramente e não houve embates com os países onde os FTAs cobrem produtos farmacêuticos.

Além disso, a política americana não é totalmente rígida.

Até Jamie Love, um veterano crítico da campanha dos EUA pelo endurecimento dos direitos de propriedade intelectual no estrangeiro, diz:

"Não há dúvida de que os acordos bilaterais se destinam a recuar de Doha, dificultando a adoção de genéricos. Mas é difícil dizer que a posição americana seja totalmente clara. Depende de quem está em campo".

Enquanto os representantes comerciais dos EUA pressionam por regras mais duras no interesse dos laboratórios nacionais, por exemplo, os reguladores em Washington da Administração de Alimentos e Drogas (FDA) começaram recentemente a aprovar cópias genéricas de anti-retrovirais feitas no exterior.

Isso permite que eles as comprem às custas de drogas mais caras feitas nos EUA pelo Pepfar do presidente George W. Bush, o fundo contra Aids para o mundo desenvolvido, que sofre pressão aumentar a relação custo-eficiência do tratamento.

Ainda assim, enquanto o flagelo da Aids continuar aumentando, também crescerão as tensões entre os fabricantes no mundo desenvolvido e os países em desenvolvimento, com seus orçamentos apertados.

Um dos lugares onde o debate será travado é na OMS.

O dr. Lee, homem cauteloso, temia criar antagonismos com os EUA, aos quais ele deveu sua eleição três anos atrás.

Na disputa para substituí-lo, os candidatos poderão descobrir que reconciliar a oferta de medicamentos e a propriedade intelectual será uma das questões mais difíceis em suas campanhas.
(Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves)


Data: 22/08/2006