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Ceará: Uma política de estado para C&T, artigo de Tarcísio Pequeno

Com uma das produções científicas mais importantes do mundo, o Brasilainda não soube transformar ciência em felicidade e bem-estar para suapopulação

Tarcísio Pequeno - Professor do Doutorado em Computação e do Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Ceará



Não se pode falar em ciência e tecnologia no Ceará sem que se dê ao discurso uma perspectiva, pelo menos, nacional.

Ciência é um daqueles fenômenos que, por natureza, padecem de uma certa claustrofobia: sua análise não se pode confinar, pois sua compreensão requer miradas amplas, tanto no tempo quanto no espaço.

Analisada tão somente de um ponto de vista interno, a ciência brasileira ocupa posição surpreendentemente boa no cenário mundial. Temos a décima sétima ciência do planeta e somos responsáveis por cerca de 1,5% da produção científica global.

Isso pode não parecer lá grande coisa, mas nos qualifica como uma das mais importantes ciências dentre os países ditos emergentes, lugar que disputamos com a Índia.

Temos um sistema de pós-graduação considerável, mesmo se aferido por métricas do primeiro mundo e o segundo índice de crescimento científico do mundo.

Tudo isso seria muitíssimo alentador, não fossem os problemas. Estamos entre as duas primeiras dezenas de países em ciência, mas temos seis dezenas de países antes de nós em índice de desenvolvimento humano (IDH), inclusive vários vizinhos de região.

Ciência, em uma sociedade, não é um fim em si, é um meio, um instrumento. Por quais razões temos falhado em transformar ciência em felicidade ou, pelo menos, em bem estar humano?

O Brasil é um país de desequilíbrios, e não seria diferente com sua ciência.

Ela padece de três deles, que podem ser claramente percebidos se a comparamos com o que ocorre com os países desenvolvidos ou com os que, na última década, emergiram por força de seus esforços em ciência e educação.

Em primeiro lugar, nossa ciência está, de forma maciça, confinada às nossas Universidades.

Confinamentos não quadram bem à ciência, como já observamos. Nossos números aparecem invertidos com respeito aos das nações desenvolvidas. Nelas, de setenta a oitenta por cento dos pesquisadores estão nas empresas, contra vinte ou trinta nas Universidades.

No Brasil, algo entre setenta e oitenta por cento estão nas Universidades, contra vinte a trinta nas empresas, muitos deles em estatais, como Embrapa e Petrobrás. Ou seja, há uma grande ausência da iniciativa privada na absorção de doutores e na realização da pesquisa científica e tecnológica.

A presença dos doutores na Universidade é importante, crucial mesmo. As Universidades são, na lógica do mundo moderno, as unidades de produção de conhecimento por excelência, e são, em decorrência, as formadoras de pessoal de alto nível técnico-científico, inclusive de novos pesquisadores.

No entanto, é na empresa, seja ela pública ou privada, que se dá a transformação do conhecimento em tecnologia, sob a forma de serviços, produtos ou processos. É nelas que da invenção se faz a inovação.

O segundo desequilíbrio é de caráter mais grave e de superação mais difícil, pois assume dimensões de verdadeira calamidade social. A ciência, juntamente com a educação superior e a pós-graduação, é, no Brasil, um edifício sem alicerces.

Sua base natural seria a educação pública, universal e de qualidade. Esse é o instrumento eficiente, o único, para desenvolver, estimular e colher na população o melhor do talento e da vocação para as artes do conhecimento.

É também o instrumento para tornar a população apta à absorção dos seus benefícios.

Pela educação de qualidade dá-se a formação de profissionais e técnicos, que são elementos imprescindíveis na cadeia de transmissão do conhecimento e sua transformação em benefício social.

Como está, a ciência e ensino superior no Brasil sustentam-se nas precárias estacas dos colégios privados, de relativa qualidade, o que confina seu acesso às camadas mais aquinhoadas.

Além da patente injustiça social, a alijar amplas camadas da sociedade do prazer e consolo do conhecimento, um bem por si mesmo, das oportunidades profissionais que ele proporciona e do exercício da cidadania que seu domínio confere, priva-se a ciência da retro-alimentação de talentos no número e qualidade que nosso desenvolvimento requereria.

Enfim, a educação é o meio efetivo pelo qual o conhecimento se distribui. Sem ela, acrescenta-se mais uma iníqua concentração às tantas que já acumulamos.

O terceiro desequilíbrio está no perfil da nossa formação acadêmica, mormente na formação de doutores, que tem um reflexo mais imediato na ciência. Formamos cerca de dez mil doutores por ano. Um número expressivo. Comparável à Inglaterra, por exemplo.

Não formamos, porém, nas ciências ditas 'duras' e nas engenharias doutores nas mesmas proporções que países como Inglaterra, Índia e Coréia formam.

Obviamente que a formação de cientistas sociais e humanistas é de extrema importância para o país. Isso é indiscutível.

Assim como não se aconselha que se movam pesquisadores da Universidade para a indústria para equilibrar sua proporção, mas que haja o crescimento dos pesquisadores na indústria sem detrimento de sua presença na Universidade, da mesma forma, o que se requer é uma política que estimule a formação de pesquisadores nas áreas que nosso desenvolvimento necessita.

Feitas essas considerações, vamos ao que mais importa: o que pode ser feito para que o potencial científico brasileiro, a base nada desprezível que se logrou criar nos últimos cinqüenta anos, possa vir a funcionar de forma plena para o benefício do país?

Para tanto, é preciso que tenhamos no Brasil algo que por aqui jamais se viu. A ciência, com seus derivados tecnologia e inovação, tem que ser tomada como 'política de estado'.

Deixar de ser uma área a requerer do governo atenção e dotação. Uma área ministerial a mais a ser loteada e burocraticamente mantida.

No estado moderno, ciência é um instrumento. Aliada à educação, o mais importante e decisivo instrumento de desenvolvimento social e progresso material.

Não é problema, é solução. Mas, para que assim seja, tem que ser levada ao núcleo do estado e constituir um dos eixos de suas políticas. Sua ação deverá ser tal a contaminar todas as áreas de governo e as servir.

Fazê-la uma política de estado equivale a substituir a pergunta "o que o governo pode fazer pela ciência?", pela pergunta "o que a ciência pode fazer pelo país?".

E quanto ao Ceará? Tudo quanto o que sobre o Brasil se disse aplica-se ao Ceará, mas há o que lá gorjeia que não gorjeia cá.

Há vinte anos, com a chegada de um grupo de empresários ao poder formal, experimentou o Estado o que foi por vezes descrito como um "choque de modernidade", mas que limitou-se, como tão bem nos explicou o cientista político Jawdat el Haj, em seu artigo no caderno que abriu esta série, a um choque de gestão.

Modernos, mesmo, jamais fomos. Essa elite, na realidade, nunca teve uma clara convicção da importância da ciência e das Universidades para o desenvolvimento do Estado. Nunca as priorizou.

Embora se tenha criado, ao final do Governo Ciro Gomes, a Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa, Funcap, agência que corresponderia no plano estadual ao CNPq no federal, ela, diferentemente deste, nunca destinou seus recursos inteiramente à pesquisa científica, nem mesmo principalmente a ela, sofrendo sucessivos desvios e desvirtuamentos de funções ao longo de sua curta história.

Quando teremos no Ceará a ciência, a tecnologia e a educação tomadas como política de governo e eixos para o seu desenvolvimento? Quem viver verá.


Data: 28/08/2006