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Darwin certo por linhas tortas

Livro para leigos do evolucionista alemão Ernst Mayr chega ao Brasil em tradução capenga

Um clássico moderno da biologia acaba de ganhar uma edição brasileira, com 15 anos de atraso.

Essa é a boa notícia. A má é que uma tradução descuidada e cheia de erros torna a leitura de "Uma Ampla Discussão" ("One Long Argument"), de Ernst Mayr, um exercício quase exasperante -somente recomendável a quem realmente não tem acesso ao original em inglês.

Publicado nos EUA em 1991, "One Long Argument" é um dos raros livros dedicados ao público leigo do zoólogo alemão (1904-2005), considerado o maior evolucionista do século 20.

O título faz alusão a uma frase na última página de "A Origem das Espécies", na qual Charles Darwin define sua teoria evolutiva como "uma longa argumentação" -tradução, de resto, bem mais adequada à versão brasileira.

Na obra, Mayr caminha sobre as pegadas de Darwin, traçando uma espécie de história evolutiva do pensamento do naturalista britânico.

O leitor é convidado a conhecer o pai da seleção natural desde seu despertar como naturalista, na viagem do Beagle (1831-1836), até a gênese da seleção natural, o confronto com os criacionistas e as questões que Darwin deixou sem resposta mesmo após a publicação da "Origem".

Tão mais significativo é que esse mergulho no darwinismo seja guiado por Mayr. O cientista fala de Darwin com a autoridade de quem foi co-responsável por dar à teoria darwinista o formato que ela tem hoje.

Na década de 1940, Mayr e um punhado de outros pesquisadores (como o russo Theodozius Dobzhansky, o americano George Gaylord Simpson e o inglês Julian Huxley) conciliaram as idéias de Darwin com as dos geneticistas e as dos taxonomistas, naquilo que ficou conhecido como a Moderna Síntese evolutiva.

A obra seminal do alemão, "Sistemática e Origem das Espécies", de 1942, acabou produzindo o conceito de espécie usado hoje pelos cientistas -o chamado conceito biológico de espécie.

Mayr explica a Moderna Síntese num capítulo à parte, mas antes disso tenta (com sucesso) fazer o leitor entender por que uma síntese se fez necessária, em primeiro lugar.

Sua reverência pela figura de Charles Darwin em hora nenhuma se converte em complacência: os erros e as contradições do naturalista vitoriano aparecem com uma honestidade tocante na prosa de Mayr. Ele não se furta a dizer, por exemplo, que, apesar do título, "A Origem das Espécies" não explica como novas espécies são produzidas.

Condena Darwin como "confuso" e "contraditório" e até "constrangedor" no que se refere aos mecanismos de especiação, algo plenamente justificado pelo fato de que o pai da seleção natural não entendia os mecanismos da hereditariedade (os trabalhos de Gregor Mendel com ervilhas, a base da genética, só seriam dados a conhecer em 1900).

E espezinha elegantemente o mestre ao relatar a controvérsia entre Darwin e o alemão Moritz Wagner sobre o papel do isolamento geográfico na especiação.

Mais do que um livro sobre a história da biologia evolutiva, "Uma Ampla Discussão" é um livro de história das idéias e de filosofia da biologia, disciplina à qual Mayr se apegou muito nos últimos anos de sua carreira (seu último livro, "Biologia, Ciência Única", é uma coletânea de ensaios sobre filosofia da biologia).

Desmistifica o caráter de revolução científica do pensamento darwiniano -a gênese da teoria evolutiva, como a própria evolução proposta por Darwin, ocorreu gradualmente e não aos saltos- ao mesmo tempo que reforça que nenhuma idéia foi tão importante para a formação do pensamento ocidental quanto o conjunto de teorias que se convencionou chamar "teoria evolutiva darwinista".

Isso para quem conseguir atravessar a edição brasileira, que carece, no mínimo, de uma boa revisão. Os erros de ortografia são tantos que chegam a atrapalhar o ritmo de leitura.

E termos como "survival of the fittest" e "finches" (consagrados em português, respectivamente, como "sobrevivência do mais apto" e "tentilhões") aparecem de forma bizarra como "perseverança do mais capaz" e "tordos-dos-remédios".

Mesmo com todos os problemas, no entanto, o esforço é digno de louvor. Num país em que o cenário político é cada vez mais dominado por "bispos" disso ou daquilo e as palavras "educação, ciência e tecnologia" passam longe do debate eleitoral, é sempre bom ter Ernst Mayr por perto.


Data: 28/08/2006