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Presidente da Associação dos Professores da Universidade Federal de Viçosa (Aspuv) questiona sistema de avaliação da Capes

Não há incentivos à comunicação entre professores e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e formação de grupos criativos sintonizados com os grandes problemas nacionais

Leia a carta aberta assinada por José Maria Alves da Silva, professor universitário e presidente da Associação dos Professores da Universidade Federal de Viçosa (Aspuv), endereçada ao Diretor de Avaliação da Capes, Renato Janine Ribeiro, e enviada ao "JC e-mail":

"Senhor diretor,

Pelo que anteriormente conhecia de suas manifestações opinativas sobre a Universidade pública, recebi muito bem a notícia de sua nomeação para o cargo de Diretor de Avaliação da Capes. Infelizmente os bons presságios não se confirmaram. É por isso que, muito a contragosto, me sinto no direito de vir aqui manifestar meu desapontamento.

Mais de 30 anos na Universidade pública, como discente e docente, me fizeram ver bem quão distantes das reais necessidades de nosso país estão as chamadas agências de fomento à ciência e tecnologia.

Impregnadas da cultura patrimonialista e autoritária do patronato político brasileiro, parece-me que elas estão contribuindo mais para cercear a já escassa autonomia universitária e reprimir, em vez de incentivar, o pensamento crítico e a livre iniciativa científica.

Nesse mister, o atual sistema de avaliação da pós-graduação tem exercido papel destacado, revelando um caráter que eu reputo como sendo ao mesmo tempo autoritário, comodista, produtivista e reducionista.

Autoritário porque impõe, de forma arbitrária, critérios inflexíveis definidos sem o respaldo de discussões mais amplas e abertas à comunidade interessada e sem levar em conta as singularidades das diferentes áreas científicas e características institucionais e regionais, entre outros elementos específicos do meio no qual os programas de pós-graduação se inserem.

Comodista porque as avaliações são feitas à distância, por meio de indicadores construídos sobre bases de dados cujo trabalho de coleta fica a cargo das próprias coordenações dos cursos avaliados.

Há mais de 20 anos estou aguardando que algum avaliador venha me consultar in loco para poder dar-lhe justificativas sobre o trabalho que temos procurado realizar, mostrar nossa dedicação exclusiva às atividades acadêmicas, bem como nossa preocupação em desenvolver estudos e pesquisas de forma atenta à realidade e aos problemas do país, entre outros princípios que deveriam, a meu juízo, caracterizar um programa brasileiro de excelência na área de ciências sociais aplicadas.

Produtivista porque, além de excessivamente centrado em indicadores quantitativos, com predominância da quantidade de publicações, infere a qualidade destas por meios tendenciosos e vulneráveis ao fisiologismo ou mesmo à fraude científica.

Estamos submetidos ao sistema Qualis, que, além de tratar-nos como "galinhas poedeiras", para usar a metáfora de conhecido educador brasileiro, determina os "ninhos em que os ovos devem ser botados", ou seja, revistas indexadas estrangeiras e algumas poucas nacionais localizadas nos grandes centros não facilmente acessíveis a quem não é bem relacionado com os conselhos editoriais.

Reducionista porque, além de priorizar demasiadamente apenas um dos aspectos da atividade acadêmica, aplica tratamentos semelhantes a diferentes áreas de conhecimento.

A quase-suficiência do Qualis pode até ser defensável em áreas como a física ou biologia, mas certamente não nas da área social, nas quais se deveria levar em consideração um conjunto maior de elementos caracterizadores de boa ciência e pesquisa relevante, bem como atribuir-se maior importância a outras atividades não redutíveis a publicações em periódicos, como é o caso da extensão e outras de maior envolvimento com os grandes problemas da sociedade brasileira.

Reduzir a avaliação de programas brasileiros de pós-graduação em ciências sociais a aplicação de normas de avaliação científica copiadas de outros países, a meu ver, além de autoritária, caracteriza uma atitude simplesmente anti-patriótica, ou "subserviente à intelligentsia estrangeira hegemônica", na expressão do saudoso geógrafo Milton Santos.

Dada a exigüidade dos canais de publicações credenciados, gera-se aqui um clima pior do que o "publish or perish" norte americano, como bem se referiu outro grande pensador brasileiro com experiências vividas dentro da própria Capes, cujo nome não vou citar aqui porque não tenho autorização utilizar seu testemunho.

Senhor diretor, estão aí postas as razões principais pelas quais acusamos a Capes de incentivar um "cientismo" socialmente estéril, confinado a limites cada vez mais estreitos e esotéricos, em flagrante contradição com a apregoada busca da interdisciplinaridade, manifesta notadamente no ultimo encontro da SBPC, cuja retórica parece assim mais um modismo destinado a criar "belas aparências".

De fato, não há incentivos à comunicação entre professores e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento e formação de grupos criativos sintonizados com os grandes problemas nacionais.

Na verdade, quem procurar maior envolvimento interdisciplinar corre sério risco de ser excluído dos programas de pós-graduação.

Esta é a ameaça que paira sobre todos nós que resistimos a nos submeter a um sistema antinômico dos valores pelos quais optamos quando decidimos seguir uma carreira de professor e pesquisador na Universidade pública, e que nos impede de vivermos plenamente nossa vocação.

Para encerrar, digo que esta provocação tem um propósito construtivo, como parte de um projeto de luta pela autonomia universitária.

Queremos com isso suscitar uma discussão mais ampla e difundida no meio acadêmico, na esperança de que se dê oportunidade de expressão para os descontentes e que os defensores do status quo se manifestem".


Data: 01/09/2006