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A estranha no ninho: DNA retirado de ameba comprova que "órgãos" das células superiores são bactérias modificadas

O microrganismo, revela um novo estudo, é a demonstração mais dramática de que todos os seres vivos superiores são o resultado de uma fusão de criaturas sem nenhum parentesco entre si

Ver uma imagem de microscópio da ameba Paulinella chromatophora equivale a um daqueles lembretes incômodos de que o impossível, às vezes, não só acontece como vira lugar-comum.

Esqueça a membrana translúcida do micróbio e se concentre nas estruturas gosmentas e verdes espalhadas dentro dele. São bactérias. Não, a ameba não vai digeri-las. As bactérias fazem parte da ameba. Ou a ameba é que faz parte delas. Elas são uma só.

O microrganismo, revela um novo estudo, é a demonstração mais dramática de que todos os seres vivos superiores são o resultado de uma fusão de criaturas sem nenhum parentesco entre si.

Uma delas deu origem à capacidade que animais, plantas e fungos têm de respirar oxigênio; a outra tornou algas e plantas capazes de fazer fotossíntese, produzindo sua própria comida com a ajuda do gás carbônico e da luz solar.

A idéia, proposta originalmente pela bióloga americana Lynn Margulis, da Universidade de Massachusetts, explicaria uma série de características para lá de bizarras nos órgãos celulares da fotossíntese e da respiração, como o fato de eles possuírem seu próprio material genético, o qual é herdado separadamente do DNA "principal" dos organismos superiores.

Margulis defende que o processo ajudou a criar "saltos de qualidade" evolutivos, impossíveis de outro jeito. A bactéria que a P. chromatophora "engoliu" permite que ela também realize esse truque.

Mas, ao contrário das algas e plantas, que viraram seres mesclados há bilhões de anos, a ameba passou por isso há relativamente pouco tempo -e o fenômeno não está completo.

Fusão recente

"Nós não temos um número suficiente de espécies do gênero Paulinella na nossa árvore genealógica para estimar quando isso aconteceu, mas tem de ser algo recente, porque a espécie-irmã dela, a P. ovalis, não tem plastídios", conta Debashish Bhattacharya, pesquisador da Universidade de Iowa (EUA).

Plastídio é o nome dado ao órgão celular da fotossíntese na maioria dos seres vivos que a realizam. Mas, como a pesquisa de Bhattacharya acaba de comprovar, os plastídios da P. chromatophora fizeram muito pouco para esconder seu passado de intrusos -na verdade, eles são quase idênticos a bactérias que ainda estão soltas por aí.

A prova dos noves veio do DNA do micróbio, "lido" e analisado por Bhattacharya e colegas na última edição da revista científica "Current Biology".

Falando assim parece fácil, mas acontece que a ameba é um tormento para que os tentam cultivá-la em laboratório: "É muito difícil fazê-la crescer em laboratório, e ela só vive ao lado de muitas bactérias, o que nos deu bastante trabalho", diz o pesquisador. Assim, só foi possível obter uma mistura do DNA do núcleo da célula com o DNA do plastídio (ele possui seu próprio material genético).

O esforço compensou. Os poucos fragmentos de DNA sugerem que o genoma do plastídio é várias vezes maior que o material genético compacto que esses órgãos celulares normalmente têm.

Além disso, os plastídios da ameba ainda são capazes de realizar a chamada fixação do nitrogênio. "É um processo muito custoso em termos energéticos e precisa ocorrer na ausência de oxigênio. Por isso, todas as outras plantas e algas perderam o gene desse processo em seus plastídios", explica o pesquisador.

Finalmente, quando os genes da ameba foram comparados com os de cianobactérias, as principais candidatas a "avós" do plastídio, apareceu uma semelhança inconfundível com os micróbios do gênero Synechococcus.

Não tem jeito de explicar o caso sem invocar uma endossimbiose -uma simbiose em que um dos membros da "parceria" de seres vivos vai parar dentro do outro.

A possibilidade é menos maluca do que parece, explicou à Folha John M. Archibald, do Instituto Canadense de Estudos Avançados. Tudo pode ter começado com uma simples tentativa da ameba de comer a cianobactéria.

As células normalmente fazem isso por um processo chamado fagocitose, na qual parte da membrana celular engloba a comida e é internalizada, formando o chamado fagossomo. Depois, esse fagossomo se funde a um compartimento cheio de ácido, o lisossomo, onde a digestão acontece, afirma ele.

"Esse é o curso normal das coisas. Mas, se acidentalmente a comida escapar do fagossomo antes da fusão com o lisossomo, pode ser que ela fique perdida no interior da célula sem ser detectada", conta Archibald, que comentou o estudo de Bhattacharya para a "Current Biology".

"Se o endossimbionte [a "ex-comida"] fizer fotossíntese e produzir energia de graça, esse atraso na digestão poderia se tornar benéfico para o organismo maior".

Mais estudos com a Paulinella devem elucidar outros detalhes desse salto evolutivo -como, por exemplo, a transferência de genes do plastídio para o núcleo do organismo maior.


Data: 11/09/2006