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Acesso aberto ao conhecimento científico, artigo de Rogerio Meneghini

"Tornou-se agora vital a busca de alternativas de sustentabilidade financeira para manutenção e expansão da SciELO"


Rogerio Meneghini - Professor aposentado do Instituto de Química da USP e coordenador científico do Programa SciELO, membro da Academia Brasileira de Ciências, representando-a no "InterAcademy Panel Initiative on Access to Scientific Information in Developing Countries".



Publicar no sentido lato é tornar algo público e em geral se busca com essa ação alcançar a mais ampla platéia possível. Isso vale para um diretor de um filme, um jogador de futebol ou um político quando discursa na televisão.

Neste processo há geralmente três personagens: um criador, um alvo, o qual é sempre bem definido, e um intermediário, que torna possível e tenta aprimorar o compartilhamento de emoções, informações e idéias entre o criador e o alvo.

O intermediário é, entre os três personagens, quem tem uma competência de interceder que redunde no maior público possível e que invariavelmente fica com a parte do leão dos lucros que todo o processo gera, quando ganho pecuniário é um fator importante no procedimento.

Ele pode ser o produtor de filmes, o cartola do futebol ou um marqueteiro da campanha do político.

A ciência não escapa deste mesmo ciclo no mundo de hoje. Em meados do século dezenove Darwin passou anos pensando se e como publicaria a sua obra "Teoria da Evolução".

Hoje os pesquisadores científicos não têm mais esse privilégio. Muitos se lembram de como Robert Gallo dos Estados Unidos e Luc Montaignier da França se envolveram num embate que terminou na justiça para definir quem tinha a primazia da descoberta do vírus HIV.

Num menor grau, e sem a intervenção da justiça, estas disputas são comuns no mundo competitivo da ciência atual. Publicar seus trabalhos de forma rápida e nas melhores revistas é parte essencial da busca do sucesso.

Aqui o criador é o cientista e o alvo são seus pares e também, cada vez mais, jornalistas científicos que digerem os textos de artigos para o público leigo interessado nos avanços da ciência.

O intermediário é o "publisher", que poderíamos chamar de publicador. São casas editoriais especializadas em produzir revistas científicas.

Os publicadores montam os painéis de pares para avaliar os trabalhos submetidos pelos cientistas, aferindo qualidade, relevância e enquadramento das conclusões no corpo de conhecimentos, evitando ferir teorias e princípios científicos já alicerçados.

Os publicadores exercem, portanto, um papel importante em todo o processo.

Um problema está, porém, em que seus lucros estão crescendo de forma desproporcional, alcançando um terço do capital das empresas ao ano. Há hoje mais de 2.000 publicadores publicando cerca de 16.000 revistas por ano com faturamento de bilhões de dólares.

Os cientistas começaram a atentar para isso quando se deram conta que se tornava cada vez mais difícil acessar os artigos científicos em que estavam interessados.

Ou porque o orçamento da biblioteca que os serviam não comportava mais a assinatura de muitas revistas, cujos preços cresceram em média três vezes nos últimos 20 anos, ou porque, nas suas versões eletrônicas na Internet, cada artigo passou a custar em média cerca de 30 dólares para ser acessado. Se essa dificuldade foi sentida nos países desenvolvidos, o que dirá em países mais pobres.

E anedótico que os cientistas são distraídos. Neste caso isso pode de certa forma ter sido o caso. Só foi no final dos anos 90 que eles se aperceberam da seguinte armação:

1) Quase a totalidade da pesquisa publicada é realizada com financiamento a fundo perdido de agências governamentais.

2) Os pesquisadores submetem seu artigo ao publicador que recorre a painéis de pares para avaliá-lo, sem pagar-lhes nada por isso. Isso é possível porque, mais do que dinheiro, prestígio é uma moeda forte no mundo dos cientistas e serem avaliadores de artigos que os publicadores lhes enviam lhes confere reconhecimento.

3) Se o trabalho é aceito o pesquisador tem que pagar uma taxa por página do artigo para que este seja publicado e, além disso, transferir os direitos autorais ao publicador.

4) Este finalmente vende esses artigos em revistas às bibliotecas ou diretamente aos pesquisadores interessados via Internet. Certamente, um negócio da China. Pode ser imaginado como seria bom para o editor de Paulo Coelho se esse pagasse para publicar um livro apenas pelo prazer de compartilhar suas emoções com milhões de leitores.

À constatação deste procedimento um tanto ardiloso somou-se uma indignação pelo grau de inacessibilidade crescente que o conhecimento científico passou a ter principalmente nos países menos desenvolvidos.

No final da década de 90 iniciou-se um movimento para que houvesse mudanças profundas no processo de publicação científica em busca do acesso aberto (open access) aos artigos científicos e que foi liderado por cientistas de grande prestígio.

Há muitas vertentes do movimento e uma delas está em deliberação no congresso norte-americano neste momento e é noticia nas páginas dos maiores jornais americanos, pois gera interesse nos pagadores de impostos.

Se aprovado, as agências federais que concedem recursos aos pesquisadores americanos tornarão obrigatório o depósito de seus artigos em repositórios institucionais na internet, que ficam disponibilizados ao acesso aberto, passados seis meses da publicação.

Como não poderia deixar de ser a decisão é vista com muitas restrições pelos publicadores, mas a força do movimento de acesso aberto leva a crer que eles tenderão a dar o sinal verde. Medidas similares estão sendo implementadas na Inglaterra.

Muitas das revistas de mais prestígio provavelmente não sofrerão com isso, pois os seus artigos são aguardados com grande expectativa para serem lidos tão cedo quanto possível após a publicação.

Isso certamente para quem pode pagar. Essa ponderação deve estar sendo feita pelo congresso americano que, corretamente, não deseja desestruturar os publicadores.

Se esse procedimento vai, no geral, atender aos interesses dos leitores de ciência é algo que ainda não está claro.

O Brasil tomou em 2000 uma decisão importante e engenhosa para contornar as dificuldades de acesso fechado. A Capes criou um portal de acesso à Internet a cerca de 10.000 revistas científicas, incluindo as mais prestigiosas do mundo.

Muito embora ela não seja propriamente uma iniciativa de acesso aberto, pois é restrita ao ambiente acadêmico brasileiro, a decisão de lançá-la é uma das mais importantes nos últimos anos no contexto acadêmico brasileiro.

Pode-se calcular que ela barateou o acesso à literatura científica internacional de no mínimo 10 vezes, democratizou a disponibilização em tempo real dos artigos, fazendo com que quando publicados possam ser lidos no mesmo dia por um pesquisador de uma universidade no Amazonas ou de São Paulo.

É, ainda mais, uma iniciativa inédita, tendo sido tomada em nível nacional apenas no Brasil. Em outros países essas negociações se dão entre as universidades ou outras instituições de pesquisa individualmente com os publicadores.

Assim, uma universidade rica como a da Califórnia faz acordos similares ao portal Capes. Porém, colégios e várias universidades de menor porte não tem condições de negociar acesso a um universo de 10.000 revistas.

Há cerca de quatro anos o Ministério da Educação pretendeu acabar com o portal Capes, motivando forte reação da comunidade científica, incluindo estudantes de pós-graduação, o que fez com que os proponentes do fim do portal retrocedessem.

Esse é um bom sinal da valorização dessa iniciativa.

O portal Capes não resolve, porém, o problema de revistas de acesso fechado. Um médico não acadêmico não vai poder acessar um artigo, que descreve um novo processo de diagnóstico para uma doença, através do portal.

Por outro lado uma outra boa iniciativa de acesso aberto é que cresce o número de revistas operando deste modo, aproximando-se de 10% do total de revistas de acesso fechado. Elas podem ser acessadas gratuitamente em seus artigos completos em qualquer lugar do planeta.

O mecanismo de financiamento é em geral distinto e não vislumbra lucros. Obviamente vai levar um bom tempo para que todas as revistas se tornem acesso aberto, se é que um dia isso acontecer.

A Capes poderá então economizar os 32 milhões de dólares para outras iniciativas e se realizariam as fantasias dos que sonham com um acesso aberto e universal ao conhecimento científico, com todas as implicações éticas, filosóficas e pragmáticas nele contidas.

A discussão de acesso aberto é de maior interesse para países em desenvolvimento do que para países mais ricos, por razões óbvias.

Apesar disso, esse assunto é pouco discutido em congressos científicos brasileiros, quanto mais no congresso nacional. Na China e na Índia o interesse dos acadêmicos por acesso aberto é significativamente maior.

Poucos sabem que uma das primeiras iniciativas de acesso aberto do mundo ocorreu no Brasil, não na luta contra os publicadores internacionais mas na criação de um programa que disponibilizasse revistas brasileiras de ciência em acesso aberto. Ele foi criado através de uma parceria entre a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de SP) e a Bireme (Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, filiada à OPAS) em 1997.

O programa recebeu o nome de SciELO (iniciais em inglês de Biblioteca Eletrônica de Ciência Online). Posteriormente o CNPq passou a integrar a parceria. Procurava-se com isso aumentar a visibilidade nacional e internacional dessas revistas, ao mesmo tempo que se as submetia a uma avaliação rigorosa e pró-ativa para o ingresso e permanência na coleção SciELO.

Há vários indicadores de que esse empreendimento deu início a um processo de melhoria na qualidade de revistas científicas nacionais, preenchendo uma lacuna no ciclo de fazer ciência no Brasil. Para citar apenas um deles, o programa se expandiu para outros países latino americanos, Espanha e Portugal.

Hoje são mais de 300 revistas, ou seja, acima de 10% do total de revistas de acesso aberto do mundo. O significado disso pode ser comparado com os escassos 1%-2% do total mundial quando se analisa uma gama de atividades científicas brasileiras. Essa iniciativa e sua primazia são reconhecidas e citadas dentro do movimento internacional de acesso aberto.

É verdade que como o financiamento era e continua sendo com recursos públicos de agências de fomento, SciELO não poderia deixar de operar no modo acesso aberto.

Porém também é verdade que para atingir suas metas, entre elas a de fornecer grande visibilidade às nossas melhores revistas, era fundamental operar no modo acesso aberto, num momento em que não havia nem conceito e nem movimento de acesso aberto.

Tornou-se agora vital a busca de alternativas de sustentabilidade financeira para manutenção e expansão da SciELO. Criatividade neste sentido, inclui previsão de aportes de outros recursos públicos e privados, mantendo o programa sem finalidade lucrativa, e que poderão tornar SciELO paradigmático no novo mundo da comunicação científica.


Data: 11/09/2006