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Voto nulo e antiinflamatório, artigo de Marcelo Leite

Como é possível não ter sido detectado um risco tão óbvio?

Marcelo Leite - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp

 


Houve um tempo em que se votava no Cacareco. Em 1959, os eleitores de SP despejaram coisa de cem mil votos no célebre rinoceronte do recém-inaugurado zoológico da cidade.

Foi o mais votado. Virou sinônimo de voto nulo e de perda de confiança, de alheamento em relação ao sistema político. E o que o voto anulado tem a ver com antiinflamatórios? Não muito, como se verá adiante, mas o bastante.

A semana assistiu a um novo furacão no ramo dos antiinflamatórios, largamente utilizados como analgésicos. Não bastou a derrocada do Vioxx (rofecoxibe), em 2004, que levou de roldão outros inibidores seletivos de cicloxigenase-2 (Cox-2).

Agora o vendaval da medicina baseada em evidências fez novas vítimas na geração anterior de antiinflamatórios, que atuavam indistintamente sobre as duas formas da enzima, Cox-1 e Cox-2.

Voltaren e Cataflam são algumas das identidades comerciais assumidas no Brasil pelo novo vilão, o diclofenaco.

A tempestade se abateu sobre ele com um artigo publicado eletronicamente no periódico "Jama", da Associação Médica Americana (EUA). Pesquisadores da Austrália lhe dirigem a mesma acusação assacada contra o Vioxx: danos ao coração.

O curioso é que não se fez pesquisa nova mas sim a reunião de dados de outros 23 estudos, com um total de 1,6 milhão de pacientes.

É o que se chama de meta-análise, a compatibilização estatística de resultados obtidos em vários testes clínicos.

Esse tipo de revisão sistemática é a mais confiável fonte de informação para orientar a prática clínica, no ramo conhecido como medicina baseada em evidências.

A meta-análise australiana confirmou o que já se desconfiava sobre o rofecoxibe desde 2000, mas que só explodiu em 2004: aumenta o risco de infarto do miocárdio. E logo no primeiro mês, não só depois de 18 meses, como chegaram a alegar fabricantes

Vitória para David J. Graham, um diretor da FDA -agência de alimentos e fármacos dos EUA, equivalente à nossa Anvisa - que comeu o pão que o diabo amassou por ter posto a boca no trombone sobre esse efeito colateral do popular e rentável antiinflamatório.

Ele assina um editorial devastador que sairá dentro de 17 dias na mesma edição impressa do "Jama" com o artigo dos australianos.

A novidade do estudo, porém, foi o indiciamento também de Voltaren e companhia, algumas das mais utilizadas alternativas ao Vioxx.

Para o consumidor, em especial o que depende de antiinflamatórios para ter qualidade de vida, fica uma sensação de desamparo.

Muitos devem perguntar-se: como é possível que autoridades reguladoras não tenham detectado antes risco tão óbvio, após três décadas de comercialização?

Aqui ressurge a analogia com o voto.

Tais percalços das agências de vigilância sanitária, aliados à suspeita de que deixaram de cumprir sua obrigação com o público por sucumbir aos imperativos do lucro privado (no caso, das empresas farmacêuticas), abrem uma crise de confiança num daqueles complexos sociotécnicos que o britânico Anthony Giddens chama de sistemas especialistas.

O voto em Cacareco pode até ter sido um protesto inconseqüente, mas o voto nulo que se defende, na eleição dentro de duas semanas, parece um sintoma diverso.

Não de ignorância, alienação ou desespero, como diagnosticado pelos analistas de plantão, mas de perda de confiança no sistema especialista da política.

Essa inflamação é grave. Dói demais, pode espalhar-se, e há cada vez menos antiinflamatórios insuspeitos no mercado para combatê-la.


Data: 22/09/2006