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Um parasita do afeto humano, artigo de Fernando Reinach

Na medida em que o homem avançou sobre os diversos ecossistemas e aos poucos foi invadindo seu hábitat, eles foram caçados impiedosamente e hoje muitos já se extinguiram ou estão na lista das espécies em extinção.

Fernando Reinach
 -  Biólogo, professor titular do Instituto de Química da USP e diretor executivo da Votorantim Novos Negócios



Quando o meio ambiente se modifica, os seres vivos incapazes de se adaptar são extintos.

Por esse motivo um dos aspectos mais interessantes da biologia são as estratégias utilizadas pelos animais para sobreviver em novos ambientes.

Meu exemplo favorito é uma espécie que desenvolveu a capacidade de explorar nossa habilidade de dar e receber afeto. Utilizando sua capacidade de parasitar diretamente nossa mente, esse animal conseguiu garantir a sobrevivência de sua espécie.

Como todo parasita, teve de abrir mão de sua liberdade, mas valeu a pena: da maneira como o homem vem alterando o planeta, provavelmente essa espécie será a última do seu grupo a se extinguir, pois associou definitivamente seu destino ao nosso. É o cão.

Desde que o homem se espalhou pela Terra, os grandes carnívoros têm sofrido com nossa presença. No passado essas espécies competiam com o homem por alimentos, mas também se alimentavam de nossos ancestrais. São os leões, tigres e lobos.

Na medida em que o homem avançou sobre os diversos ecossistemas e aos poucos foi invadindo seu hábitat, eles foram caçados impiedosamente e hoje muitos já se extinguiram ou estão na lista das espécies em extinção.

A exceção é o cachorro, que foi capaz de adotar uma estratégia de sobrevivência exemplar, entregando seu destino ao pior inimigo.

Provavelmente o homem primitivo domesticou o cachorro para aproveitar sua capacidade de vigilância, do mesmo modo que domesticou as vacas para obter leite e os cavalos para o transporte.

Mas ao contrário desses animais, o cachorro teve a 'astúcia' de desenvolver uma relação direta com nossa capacidade de criar laços afetivos.

Talvez isso tenha ocorrido por causa do olhar meigo ou da capacidade de balançar o rabo. Não importa, o fato é que esse foi provavelmente o animal que melhor explorou essa característica humana.

Com o passar dos anos a função dos cães como guardas perdeu importância e eles corriam o risco de ter sua população reduzida, como ocorreu com os cavalos com o surgimento do automóvel. Mas sua conexão direta com o afeto humano tem garantido o contínuo crescimento da espécie.

Nos países desenvolvidos, o homem criou e sustenta uma indústria de bilhões de dólares para suprir esses animais com comidas especiais, roupas, tratamento veterinário, hotelaria e até tratamento psicológico.

Tamanha é a relação de parasitismo dessa espécie com nossa capacidade de dar afeto que nos países pobres, onde humanos passam fome, os cães competem com as crianças por comida.

São poucas as sociedades em que esses animais são sacrificados para servirem de alimento.

Mas para conquistar o privilégio de serem sustentados e protegidos pela espécie mais poderosa do planeta, eles tiveram de abrir mão de muitos privilégios, inclusive sua liberdade reprodutiva: muitas raças entregaram aos seus protetores a liberdade de escolher seus parceiros sexuais.

O domínio que esses parasitas exercem sobre o sistema amoroso de seus hospedeiros é de tal ordem que a maioria dos humanos realmente acredita que ama seus cães.

É impressionante o sucesso da estratégia evolutiva dessa espécie, talvez o único caso em que um parasita controla a mente de seu hospedeiro. Reconhecer esse fato só faz aumentar minha admiração pelos cães.


Data: 27/09/2006