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Um roteiro do espaço-tempo

Parceiro de Buñuel, Jean-Claude Carrière fala de seu livro sobre Einstein, que está saindo no Brasil, e diz que o cinema é escravo da técnica

Roteirista e escritor com livre trânsito na literatura, no cinema e no teatro, o francês Jean-Claude Carrière é famoso pelas parcerias com o diretor Luis Buñuel -que gerou obras-primas como "A Bela da Tarde"- e com o veterano diretor teatral inglês Peter Brook.

Para este último, adaptou o texto religioso indiano "O Mahabharata", transformado em filme.

"Homem
de literatura", como se define, Carrière está lançando no Brasil "Einstein, Explique, Por Favor" (Rocco, trad. de Maria Ângela Villela, 160 págs., R$ 26), livro que aborda conceitos básicos da física moderna e é resultado de 20 anos de pesquisa.

Em entrevista à Folha, ele explica por que se aventurou em produzir divulgação científica, fala da literatura atual e diz que a tecnologia digital está acabando com a força do cinema.

Para o ex-diretor da principal escola de cinema francesa, o teatro é hoje a forma de expressão mais viva.

- Por que o sr. decidiu escrever sobre física?

Primeiramente porque a física foi a grande vedete das ciências do século 20, esteve na vanguarda e foi seguida pelas outras. Além disso, há 20 anos trabalho com físicos e astrofísicos. Sou totalmente literário de formação, mas, quando cheguei perto dos 50 anos, me perguntei se iria morrer idiota, negligenciando a maior revolução do espírito do século 20. Encontrei dois astrofísicos que se tornaram meus amigos [Jean Audouze e Michel Cassé] e começamos a trabalhar juntos um dia por semana. Fizemos um livro, "Conversations sur l"Invisible" [Conversas sobre o Invisível]. Foi um grande sucesso. Trabalhei com outros cientistas e pensei em fazer um livro sozinho, com meus meios literários, dar uma idéia do que foi essa revolução científica. Einstein é a figura favorita, evidentemente. Além disso comemorávamos os 50 anos da sua morte e o centenário dos seus artigos de 1905, que mudaram nossa visão de mundo.

- Por que optou por uma menina viajando no tempo e conversando com Einstein? "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaarder, e a ficção científica foram inspirações?

A ficção científica certamente. Mas me inspirei em uma frase dita a mim por um físico: "Você sabe que ainda hoje continuamos a trabalhar com as equações de Einstein?". Ou seja, continuamos a analisá-las e descobrimos coisas que talvez Einstein não soubesse que havia estabelecido. Daí me veio a idéia de que Einstein ainda está produzindo. Seja vivo ou morto, não importa. A menina diz: "Einstein, você disse que o tempo não existe". Essa frase é a chave que me abriu o livro. A partir daí trabalhei como um roteirista, imaginando um cenário que não seria localizado no espaço e no tempo, mas que seria um "espaço-tempo" com portas que se abrem para onde quisermos. Gostei da idéia de que Einstein está ciente do que ocorre hoje e que continuamos a trabalhar com suas equações. Ou seja, com ele.

- Em seu livro, foi mais importante a divulgação da ciência do que a pretensão literária?

Sim. O aspecto científico pesou mais do que o charme possível da literatura. Einstein temia muito que o tomassem por escritor, poeta, louco, gênio ou profeta. Dizia que era apenas um cientista. Outra coisa que me levou a escrever foi que Einstein, durante toda sua vida, se preocupou em explicar suas teorias para os leigos, com palavras simples. Respondeu de próprio punho todas as cartas que recebia, mesmo as de idiotas ou loucos. Acho isso admirável.

- Como está a ficção científica hoje?

Acho que ela foi superada pela ciência, de alguma forma. A época de ouro da ficção científica são os anos 50. Ainda leio revistas do gênero, mas acho que apenas um texto em cada dez traz alguma idéia que me atrai. Em particular, o que me parece ter envelhecido é a "space opera", a construção de um mundo totalmente diferente em outro lugar. Acho que a ficção científica se exprime melhor nos contos, nas narrativas curtas. Há boas histórias, mas elas apenas repetem situações que um velho leitor como eu acha que já leu diversas vezes. Também poderíamos falar isso do romance.

- O romance está em crise?

Sim, na França há apenas um ou dois autores como Michel Houellebecq, que, baseados na sociedade contemporânea, conseguem dizer coisas fortes na forma romanesca. Não é o caso da poesia. Pelo menos aqui na França, há 60 anos, depois dos poetas surrealistas, a poesia está morta. Ainda é produzida, talvez tenhamos bons poetas, mas não encontra mais eco entre os leitores.

- Hoje, qual é a importância de Buñuel, com quem o sr. trabalhou na sua última fase?

Assim como Pasolini e outros cineastas, Buñuel foi testemunha de uma época em que o cinema atingiu uma liberdade de expressão que desapareceu. Vemos hoje seus filmes com uma espécie de nostalgia, já que refazer filmes como "O Fantasma da Liberdade" seria impossível atualmente. Na luta entre o cinema de imaginação e o comercial, o último ganhou, é inquestionável. Mas é bom que filmes como os seis que fiz com ele ainda sejam vistos. Não sou totalmente pessimista, só um pouco.

- A tecnologia digital não facilitou a produção de filmes?

É exatamente o contrário. Quanto mais a técnica é fácil, mais a idéia é difícil. Nunca foi tão difícil fazer uma imagem inesquecível como a da lâmina em "Um Cão Andaluz" [1928, de Luis Buñuel], uma das imagens fortes do século 20. É muito difícil fazer apenas uma com essa qualidade. A aparente facilidade técnica é uma mentira, um erro. A técnica sempre teve a pretensão de poder dispensar a idéia, o pensamento. E o resultado lamentável são esses filmes feitos em vídeo, com câmeras no ombro, digitais, sem nenhuma atenção dispensada ao roteiro e à direção propriamente dita. Isso mostra como é perigoso acharmos que os aparelhos farão filmes nos substituindo. Dirigi uma escola de cinema por dez anos [a Femis, Escola Nacional Superior de Ofícios da Imagem e do Som] e sei do que estou falando.

- Além da física, o sr. já havia pesquisado um texto religioso indiano, "O Mahabharata", filmado por Peter Brook em 1989. Qual a relação entre esses domínios e a literatura, o cinema e o teatro?

Vi Peter ontem... Acho que seria artificial encontrar relações entre Einstein e "O Mahabharata", mas precisei pesquisar documentos e trabalhar durante anos. As direções de pesquisa são diferentes, ainda que seja possível dizer que Einstein também é um mito, assim como alguns personagens de "O Mahabharata". Podemos pensar que um desafio foi estudar como abordar o mito. Peter adorou "Einstein...". Não sei se vamos voltar a trabalhar juntos, porque ele agora se dedica ao "teatro das pequenas formas", peças com dois personagens, de Beckett... Ele tem 91 anos... E eu acabo de completar 75. "O Mahabharata" nos tomou 11 anos... O teatro é hoje a forma de expressão mais viva. Ele é constantemente renovado no mundo inteiro e conseguiu superar no século 21 as regras do teatro clássico, enquanto o cinema ainda está prisioneiro da técnica. Um filme ainda é um retângulo projetado em uma parede. Pensemos em tudo o que aconteceu na história do teatro... É impressionante. Há grupos no mundo inteiro que fazem um bom trabalho. Sua grandeza é que não dura, é o triunfo do efêmero.


Data: 02/10/2006