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Cocar de plástico, artigo de Marcelo Leite

Ainda há quem queira virar índio ou deixar de ser branco?

Marcelo Leite - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp.


Será lançada depois de amanhã em Brasília uma obra que deveria figurar na biblioteca de todo brasileiro que não se envergonhe de sê-lo: "Povos Indígenas no Brasil 2001/2005", editada pelo Instituto Socioambiental (ISA). O décimo volume da série iniciada em 1988 traça uma espécie de radiografia caleidoscópica de 225 povos -nove a mais que na edição anterior (1996/2000).

Cinco séculos depois, ainda há quem queira virar índio ou deixar de virar branco? Por que o IBGE registrou aumento de 294 mil para 734 mil no número de indígenas entre 1991 e 2000? Como entender que estejam identificadas, demarcadas ou homologadas 580 terras indígenas, abarcando quase 13% do território nacional? Por fim, como alguém ainda se dá ao trabalho de editar 866 páginas sobre gente que fala 180 línguas separadas?

Há algo de quixotesco no trabalho do ISA -ainda bem. Sem ele, seria complicado achar uma fonte capaz de responder rápido: quem fez mais pelas terras indígenas, FHC ou Lula? FHC, que declarou 273,8 mil km2 no primeiro mandato e 65,16 mil km2 no segundo (média de 169,48 mil km2), contra 87,49 mil km2 de Lula -que terá de correr, se almeja ultrapassar sua Nêmesis também nesse quesito.

É urgente parar e pensar no fato paradoxal destacado por Beto e Fany Ricardo na introdução: os indígenas estão proibidos por portaria da Funai de confeccionar adereços com partes de animais silvestres, embora o Itamaraty exiba sua arte plumária como símbolo autêntico da identidade nacional. (Não é de espantar, assim, que um caiapó substitua as penas de arara, papagaio e mutum por, hum, canudinhos de plástico.)

Identidade? Autenticidade? Nacionalidade? Aqueles que não alimentarem o receio de moer idéias feitas até o osso podem também recorrer a "Povos Indígenas".

Entre as páginas 41 e 49, encontrarão um triturador no depoimento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que se dispôs a "responder" (as aspas são dele) a pergunta: Quem é índio? Sua "conclusão": "Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é".

Começa amanhã no Quênia a 12ª Conferência das Partes da Convenção sobre Mudança Climática da ONU. A delegação brasileira vai chefiada por Marina Silva. A ministra do Meio Ambiente ostentará a estimativa de nova redução na taxa de desflorestamento e tentará levar adiante a proposta de compensação financeira por reduções voluntárias de desmate (responsável por três quartos das emissões nacionais de gases-estufa).

Proposta há anos por alguns pesquisadores e ambientalistas, a idéia sempre enfrentou bombardeio do Itamaraty e do Ministério da Ciência e Tecnologia. Supostamente, comprometeria a soberania sobre a região amazônica (pois implica monitoramento internacional). Nas últimas semanas, ganhou apoios de peso, como os do Banco Mundial e da "Revisão Stern", ampla revisão sobre economia e mudança climática encomendada pela governo britânico.

Se não se perfilar mais decidida e unificadamente por trás da proposta de Marina, o governo brasileiro corre o risco de ver formatada e faturada por outros uma fonte de recursos em que é o maior interessado do planeta. Além de perder, pela enésima vez, a chance de liderar alguma coisa, efetivamente, pela primeira vez na história deste país.


Data: 06/11/2006