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Acesso à universidade transforma a vida de cotistas

Para estudantes negros, ingresso ao Ensino Superior significa vitória

 

Um movimento em prol da inserção do negro na universidade começou a crescer e se expandir no Brasil recentemente. Em várias partes do país, Instituições de Ensino Superior passaram a adotar o sistema de cotas afim de facilitar o acesso destes estudantes, além de outras iniciativas terem ganho espaço e vida, como, por exemplo, a criação de universidades cuja principal missão é a inserção do negro no terceiro grau e o debate de sua marginalização na sociedade brasileira, com o objetivo de resgatar a identidade destes cidadãos.

 

Ainda não se pode medir com estatísticas fiéis se tais ações já surtiram efeitos significativos no que diz respeito à inclusão dos negros no Brasil. Para estes estudantes, porém, não há dúvida de que a inserção abriu portas e, agora, é possível enxergar um futuro melhor, com mais esperança. Esperança de que, daqui para frente, estatísticas como a publicada no mais recente estudo do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) sobre "Escolaridade e Trabalho: Desafios para a População Negra nos Mercados de Trabalho Metropolitanos" (link pdf) possam mudar. O estudo apontou uma remuneração até 35% menor de negros com Ensino Superior, além de média cinco vezes menor de negros com 3º grau em relação aos brancos. As regiões pesquisadas foram: Belo Horizonte, Salvador, Recife, Porto Alegre, São Paulo e Distrito Federal.

 

Esta mudança de cenário é o que deseja a estudante do curso de Administração da Unipalmares (Universidade Zumbi dos Palmares), em São Paulo, Kátia Botelho, 22 anos. "Realizei o sonho de ser a primeira da família a entrar na universidade. Prestei vestibular várias vezes, mas embora fosse a melhor de minha turma na escola estadual, não conseguia uma vaga nos grandes vestibulares das instituições públicas e via meu sonho sempre adiado. Hoje, é uma vitória estar no Ensino Superior. Conquista que espero poder ver realizada por outros estudantes como eu", afirma ela.

 

Kátia ingressou na faculdade em 2004, e hoje, colhe os frutos de ter tido acesso ao Ensino Superior e apoio para crescer e se desenvolver. Por meio de um acordo da Unipalmares com empresas privadas, a estudante teve a oportunidade de estagiar numa grande companhia e, hoje, ter sido contratada. "Não poderia estar mais feliz. Quando entrei na universidade ganhava pouco mais do que o valor da mensalidade do curso. Tive dificuldade para me adaptar. Assim como qualquer estudante que veio do ensino público, muitas vezes, pensei que não ia conseguir. Esse resultado é uma grande vitória pessoal", disse Kátia emocionada logo após ter recebido a notícia da efetivação.

 

Para a estudante, a contratação é só um dos benefícios que o Ensino Superior proporcionou. Para ela, também é preciso destacar o complemento da formação com discussões sobre a inserção social do negro, sua participação no mercado de trabalho e a reconstrução de identidade, temas trabalhados na instituição afim de resgatar a cidadania destes jovens. "A universidade me ensinou a ter orgulho de minhas raízes e a valorizar a história de um povo que historicamente é marginalizado. Na universidade, ao contrário do que a mídia prega, a gente ouve que o negro não é só o 'pobre coitado' condicionado a ocupar sub-empregos, mas que temos potencial para muito mais", explica.

 

É essa a mensagem que também foi passada para a estudante Cláudia Regina Machado, 37 anos, que ingressou na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) pelo sistema de cotas. "Hoje, quando falo com meus três filhos e com o resto da criançada da comunidade sobre universidade é como se esse fosse um universo tangível e do qual eles querem fazer parte. Não é mais "a universidade" como se fosse impossível chegar lá", conta. Em suas conversas em casa e com os amigos, ela comenta que o fato de ter ingressado no Ensino Superior é motivo de orgulho e serve de espelho para os mais próximos. "Quando conto o que acontece em sala de aula, as discussões, eles ficam interessados e, agora, discutimos em casa sobre qual a carreira que eles vão seguir. Não há nada mais gratificante do que saber que sua atitude motiva outras pessoas a querer melhorar", diz Cláudia.

 

Batalhadora, a estudante decidiu voltar aos bancos escolares já adulta, casada e com três filhos. O sonho era antigo. "Sempre que passava em frente ao prédio da UERJ pensava: "ainda vou estudar ali, ainda vou fazer parte disso", lembra ela. No ano em que o vestibular com regime de cotas foi instaurado, Cláudia se inscreveu e passou em Pedagogia. "Fiquei muito emocionada, sabia que dali para frente minha vida ia mudar", conta. Assim como a maioria do estudantes cotistas, Cláudia fez oficinas para melhorar seu desempenho no curso. Além disso, também recebeu uma bolsa permanência de R$ 190,00 para conseguir manter-se na universidade. "No começo você tem dificuldade em tudo. Para entender a linguagem dos professores, para tirar cópias dos materiais, para comer e para se locomover de casa para universidade. Como estudava de manhã e fazia os reforços à tarde, às vezes, ficava com fome. Quando colocaram um microondas na copa e pude trazer meu almoço, aí sim ficou melhor", relata.

 

Hoje, Cláudia faz parte de um grupo de iniciação a docência e ministra oficinas de apoio das quais um dia fez parte como aluna. Sua dedicação lhe rende, mensalmente, uma bolsa de R$ 190,00. Você pode se perguntar, como Cláudia consegue se virar com menos de um salário mínimo? É aí que entra o apoio dos amigos e familiares. "Muitas vezes pensei em desistir por causa do dinheiro, das crianças. Mas percebi que não podia deixar meu sonho de lado por causa das dificuldades. Lá em casa, quem banca a maior parte das contas é meu marido, que é vigia. As crianças recebem o bolsa-família para custear os gastos com comida e educação. É claro que é difícil, mas ninguém quer que eu pare, muito pelo contrário, todos dão a maior força. Outro dia meu marido virou para mim e disse: você não está atrasada para a aula não?", recorda Cláudia.

 

Uma característica que parece comum aos estudantes que fazem parte das minorias que estão na universidade é a solidariedade em relação ao próximo. Assim como hoje Cláudia apóia novos estudantes que vêm às oficinas em busca de reforço, o estudante Wesley Pereira Granjeiro, 24 anos, que ingressou no curso de Artes Plásticas da UnB (Universidade de Brasília) pelo sistema de cotas, também faz parte da assessoria de diversidade e auxilia novos estudantes ao discutir melhorias para os cotistas da UnB. Ele, que prestou o vestibular tradicional por quatro vezes seguidas sem sucesso, depois de entrar pelo programa de cotas, tem como principal tarefa na assessoria difundir este meio de ingresso para alunos da rede pública do Distrito Federal.

 

"Sem dúvida, entrar na universidade significou uma nova etapa em minha vida. Tive a oportunidade de me aprimorar profissionalmente e fazer parte de um mundo até então desconhecido e restrito para as pessoas que não vem de uma realidade carente. Esse é um dos motivos que me fizeram ingressar no programa 'cotistas nas escolas' promovido pela assessoria de diversidade da UnB, para difundir a jovens carentes que vivem a mesma realidade que eu a chance de ingressar no Ensino Superior", explica.

 

Estagiário no programa desde 2005, Granjeiro recebe uma bolsa permanência de R$ 180,00. "É pouco, mas para quem não tinha nada, é ótimo. Pude comprar livros e pagar a passagem para a universidade, que são as maiores dificuldades de qualquer estudante sem recursos. Apesar de todos os desafios, não desisto da faculdade por nada. Ainda quero me formar, ser artista plástico e também professor para poder ensinar as pessoas que, com força de vontade, é possível ir muito longe", diz.

(Portal Universia, 19/11/07)


Data: 20/11/2007