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Com chapéu sempre alternado (as escolhas de Giosué)

José Edílson de Amorim

Professor de Literatura Brasileira da UFCG

 

 

“Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras estava o minúsculo corpo humano.” (Walter Benjamin. “Experiência e pobreza”)

 

“(...) no mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade doméstica, como ele era, talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e precária; manter essa vida exige esforços desesperados e heróicos, e às vezes perdemos.” (Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar).

 

 

O filme A vida é bela (1998) se anuncia aos olhos do espectador por uma imagem muito oportuna e expressiva: uma caixa escura se abre, ilumina-se e exibe, na parte central, cenas do filme que o espectador irá ver; na parte lateral, passam os créditos do filme. É uma imagem que desdobra câmara e projetor como um só mecanismo. A imagem é a instância narrativa primordial do cinema: o filme começa aqui.

 

Logo depois, o espectador escuta e ou lê a seguinte fala: “Esta é uma história simples, no entanto, não é fácil de contá-la. Como numa fábula, há dor... e, como numa fábula, ela é cheia de maravilhas e de felicidades.” Aqui se inicia a narrativa.

 

Nos dois recursos estão, bem demarcadas, as instâncias narrativas de base deste filme: a fala, que promete ao espectador contar uma história, confessando a dificuldade da tarefa, e a imagem que já vai simulando a projeção do filme. Fica claro, então, que se está diante de uma narrativa em moldura, um discurso dentro do outro, a narrativa imagético-discursiva emoldurada pela fala inicial e pela fala final que irá fechar a narrativa. Essa solução formal é simples, mas tem rendimento interpretativo complexo, exigindo do espectador um olhar mais detido para as imagens e um exame mais cuidadoso dos diálogos.

 

Para enfrentar a dificuldade de contar, o locutor remete à fábula, advertindo, já no início, que sua história poderá instaurar mais de uma perspectiva de leitura: nas fábulas há, pelo menos, dois modos de ver – bichos viram pessoas, pessoas pensam e agem como bichos em um cruzamento de experiência e imaginação.

 

As cenas iniciais, anunciadas em miniatura, e a fala introdutória me lembraram as reflexões muito boas sobre a pobreza de experiências transmissíveis, entre as pessoas, após a brutalidade da primeira guerra mundial. Essas reflexões estão resumidas na citação que abre esses comentários. Penso que é razoável imaginar Guido e Dora a caminho da escola, no início do século passado, por um percurso seguro e conhecido, sempre cheio de sonhos e de descobertas que o mundo da infância proporciona.

 

Os dois revivem uma experiência assim, agora em três, na infância do filho Giosué. No entanto, essa parte da vida – e do filme – é interrompida, brusca e brutalmente, no dia em que a família iria comemorar aniversário do menino. Pai e filho são presos, a mãe se deixa prender para não se distanciar deles. A partir daí, o medo e a morte iminentes reduzem as expectativas das pessoas. A vida começa a desandar; outra narrativa se inicia; os nazistas ocupam a Itália e o espectador irá conhecer o avesso da utopia até então assistida. Mas o importante é que Guido não joga fora o aprendizado de sua experiência anterior. Ele irá ajudar o espectador a experimentar, a cada momento, a dupla perspectiva (às vezes, múltipla) que o filme passa a comunicar a partir daí.

 

Lembro algumas cenas em que essa perspectiva ampliada se oferece aos olhos dos espectadores:

1. O capitão médico, que Guido conhecera em sua aprendizagem de garçom, é apresentado como um homem de vida chã, sem densidade ou profundidade; sua vida interior se compraz em fazer e resolver charadas num hábito juvenil renitente. Por um momento, o expectador é levado a pensar que o capitão, pela amizade que tinha a Guido, pudesse patrocinar a fuga da família presa dos nazistas. Minha frustração foi enorme, quase me senti fraudado quando os gestos expectantes do capitão apenas revelaram seu interesse e sua ansiedade por decifrar uma charada, em prazo estipulado, recorrendo, para isso, à capacidade analítica e interpretativa de Guido, sendo este quem precisa de ajuda. Tive uma raiva danada de sua fraqueza e de sua colaboração pusilânime com os alemães. No entanto, é um gesto trivial do Capitão que permite a Guido ter o filho perto de si, com alguma segurança, em um momento crucial, quando velhos e crianças eram exterminados. Aqui, o diálogo entre Dora e outra prisioneira, mais o diálogo entre Guido e Bartolomeu, constroem uma perspectiva com um variado ângulo de visão da história. Quando Guido quase se desespera, buscando esconder o filho, o Capitão o convida para servir de garçom na festa dos oficiais nazistas; Guido inclui seu filho entre as crianças alemãs; naquele momento, foi o lugar mais seguro que ele encontrou. Que beleza de garçom e que exemplo de pai Guido tem a oportunidade de protagonizar nessa festa.

 

2. O espectador já viu que Guido povoara do seu talento criativo o mundo de Dora e de Giosué; também percebe que ele leva seu modo de ver e de viver os fatos para os momentos de violência e de perigo que o filme narra em sua segunda parte. Feito Carlitos, ele é um dos “os heróis que o mundo esqueceu (...) que iludem a brutalidade e prolongam o amor” (Drummond, “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin). Quero dizer que Guido é por inteiro; ele não deixou de ser o Guido que era antes da prisão; ele era este e, agora, mais outro. Há duas seqüências em que esse duplo olhar de Guido quase soçobra frente à banalidade da guerra. Primeira: mesmo sem saber alemão, ele atende à chamada de um oficial nazista para traduzir as ordens deste aos prisioneiros de sua cela; ele não traduz nada; cria outra fala, dirigida ao pequeno Giosué, explicando, mágica e pedagogicamente, as regras de um jogo em que pai e filho se meteram para ganhar um prêmio caríssimo à imaginação do garoto. Curioso: nenhum prisioneiro reclamou da dupla comunicação, solidarizando-se com aquele pai zeloso, em situação periclitante, pela saúde emocional e pela segurança física do filho.

 

3. Por um momento, o jogo de Guido alcança o limite de suas possibilidades. Quase que ele fica sem trunfo que lhe permita continuar no jogo segundo as expectativas que ajudou o filho a nutrir. Giosué se impacienta com um jogo que não compreende direito; exaspera-se frente a uma situação de desconcerto e de sobressalto e diz, peremptório, que não quer mais jogo nenhum, quer ir para casa logo. Chove; para além do limiar da porta, o pai sai do alojamento, disposto a se molhar, e convida o filho a irem embora; o menino hesita um pouco, considera a chuva e volta, correndo, para o beliche desconfortável. O tempo não estava nada bom – pode ter dito a intuição da criança. Mas não só isso! Essa foi, certamente, a primeira escolha vital de Giosué; a segunda foi sua recusa a ir tomar banho... Não sabemos o que aconteceria se Giosué firmasse convicção e movesse ação firme de voltar para casa. Ao final, o espectador vai saber que Giosué tem direito a essa especulação; mas ele não o faz. Sua escolha afirma, então, que cabe aos espectadores buscar compreender a narrativa que vêem, não a que desejam, ou seja, o filme que se desenvolve a sua frente, não aquele que queriam dirigir. A verdade cruel que Guido vê e, com ele, os espectadores, não é a mesma que deseja que o filho veja, embora não consiga impedir que alguns cacos e estilhaços daquela iniqüidade atinjam o garoto.

 

4. Julgo ter indicado no filme, pelas seqüências lembradas, sua perspectiva narrativa estruturalmente complexa, estimulando nos espectadores uma leitura variada e inquieta das imagens a que assistem combinadas com as falas que ouvem. Acrescento mais uma boa seqüência para exemplificar o rigor da fatura e a riqueza interpretativa que o filme oferece: lembram daquele gatinho que uma garotinha aninha no colo, dentro do caminhão, quando as famílias são conduzidas para a prisão? Pois bem; fiquem com a imagem deste gatinho. João Batista de Brito, no ensaio “Sobre cinema e poesia” (Imagens amadas. Ed. Ateliê, 1995), atualiza uma reflexão semiótica muito oportuna para a leitura do cinema: o signo, na linguagem da vida ou da arte, se expressa como ícone, como índice e como símbolo. A dimensão icônica do signo, que é imagem, está na base da linguagem cinematográfica; ora, para escapar à evidência dessa linguagem de origem, o cinema busca ser poesia; para tal, vai se aproximando da literatura ao explorar as possibilidades simbólicas da imagem. Então, aquele gato que a menina tinha no colo, com ser a imagem de um gato pequeno, tem essa imagem significativamente enriquecida, indiciando companhia, afeto e proteção mesmo no espaço hostil de um carro que vai para um campo de concentração; ou, sobretudo, por isso mesmo (a ternura se insinua na parte brutal da narrativa da mesma forma que a estupidez estivera presente em sua parte lírica). Em seqüência posterior, Dora procura, desolada e aflita, as roupas de Giosué entre as roupas das crianças e dos velhos mortos no banho a que foram levados. Mas trata-se de uma procura insólita: Dora procura na expectativa de não encontrar. O gatinho também procura, a olho e faro, as roupas que o levassem a sua companheira de viagem. De insólita, essa busca se converte em trágica; certamente, o gatinho encontrará a roupa da menina. Nesse momento, a imagem acumula camadas significativas e complexas: sozinho, o gatinho indicia a morte da menina e simboliza desamparo e solidão, carência e perda – fragilidade irreparável.

 

Finalmente, onde a estupidez na parte lírica do filme? Dou dois exemplos: numa antecipação indiciária, uns garotos truculentos invadem a casa do tio Eliseo, quebram, reviram móveis e o agridem fisicamente; noutra, a diretora da escola, com sua pedagogia da intolerância, expõe, em jantar na casa do prefeito, a assimilação pragmática da racionalidade nazista, ao invocar o argumento meramente estatístico como base do planejamento social: o resultado dessa racionalidade técnica todos conhecemos – a eliminação sumária de velhos, crianças e deficientes.

 

As estripulias herói-cômicas de Guido se insurgem contra essa aprendizagem estúpida; com uma pedagogia do afeto, ele compensou a aflição do filho ao vê-lo tomado pelos rumores e pela intuição do mal iminente. É essa a lição que Giosué comunica neste filme que narra sua experiência.

Com os pais, ele teve a oportunidade de ver o mundo a céu aberto; depois, foi obrigado a vê-lo em perspectiva restrita. Nesse depois, seu pai simula e dissimula; mostra e entremostra a vida e seus horrores. Naquela caixa exígua e escura, qual uma câmara voltada para o centro dramático do cenário, se há uma olhar restrito, há uma consciência em formação: Giosué tem informações, sabe da mãe no outro lado do alojamento e vai aprendendo, com o pai, quão perigoso ia se tornando aquele jogo, cada vez mais real, em que ele é a caça que os “homens maus” procuram de verdade. Portanto, no jogo de simular e dissimular situações, a cada lance de Guido corresponde uma atitude concreta sua para proteger o filho. Essa é a complexidade de pontos-de-vista que as cenas vão montando aos olhos dos espectadores.

 

Fora da caixa de ferro, por cuja abertura via as coisas que conseguia alcançar, como a consciência perspectiva daquela câmara escura (fundamento técnico do cinema), Giosué teve a oportunidade de avaliar, em vária direção temporal, o cruzamento de visões que, agora, se tornaram múltiplas: nem sempre as crianças carecem de ver tudo; o pai não queria que o filho visse, como evento seu, aquele jogo de horrores que era a guerra; o pai omite, mas não mente, apenas transfigura: mentir e omitir são formas diferentes de olhar os fatos e de comunicá-los; transfigurar a realidade não significa negá-la, mas buscar outras possibilidade de encarar os acontecimentos. Carlitos sabia disso; Guido e Giosué também. Sua história é uma narrativa de tensão transfigurada que toca a poesia e a tragédia. Por isso, o seu discurso não é um libelo contra a guerra (pelo menos, um libelo ao estilo do verismo neo-realista); não é um manifesto contra a iniqüidade do autoritarismo. Ou é tudo isso, também, porque uma forma eficaz de expor a banalidade da violência é não perder a oportunidade de exercitar o afeto e a compreensão; e até o riso se a dor der trégua.

 

A par de tudo isso, o filme brinda a todos com uma fábula a favor da beleza e da vida, uma fábula que educa pela magia e pela imaginação porque, afinal, as portas da percepção do mundo não são abertas, apenas, pela razão – no aprendizado das crianças e no dos adultos também. Giosué teve suas escolhas; seu pai, nem sempre; suas opções foram se estreitando. Guido não conseguiu salvar a própria vida. Num jogo brutal, como aquele, nem sempre se logram todos os lances. Mas Dora e Giosué terão o resto de suas vidas para se orgulharem do marido e do pai que tiveram. Dora, em sua sobriedade, com amor e reconhecimento; Giosué com paixão e gratidão.

 

Salvo pelo pai, Giosué não desperdiça a oportunidade de trazê-lo de volta, para si e para os espectadores, a quem, tendo prometido uma fábula, acrescenta a delicadeza de sua mais cara recordação. A vida é bela e feia – Giosué sabe disso. A perspectiva especialíssima que engendra o filme, na qual fala e imagem são instâncias narrativas igualmente significativas, traz à cena dois momentos privilegiadíssimos da sua vida. Primeiro momento: o Giosué que o espectador vê na tela vive uma experiência conduzida pela visão mágica do mundo; ele teve sua verdade, vivida por uns instantes – que são a eternidade no mundo mágico da infância –, naquele tanque inglês, logo abandonado assim que Giosué encontra a mãe... porque a vida continua. Segundo momento: o Giosué que conta sua história, agora adulto, fez mais uma escolha vital: “Essa é a minha história, o sacrifício que meu pai fez, o presente que ele me deu.”

 

Precisamos julgá-lo? Penso que não; devemos escutá-lo. Walter Benjamin ficaria contente com a riqueza dessa experiência. Pena que tenha desistido tão cedo.

 

 

 

1.                    Os comentários acima foram escritos, em fevereiro de 2008, pensando em três meninas – Inara, Juliana e Silvana; elas me ensinam que o mundo pode ser melhor; em mais quatro – Kátia, Edna, Ana e Lela – com quem aprendo a ver a vida com visão mais ampla.

2.                    A Silvana, em particular, devo o indicação de cenas e de falas indispensáveis para a compreensão do filme; seu olhar privilegiado vê coisas de que o cão duvida; guiado por ele, revi o filme e revi cenas mais de uma vez.

 


Data: 11/03/2008