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Brasil registrou 489 surtos de doenças nos últimos dois anos

Sistema monitora nos Estados situações inusitadas, que incluem desde casos de beribéri até mal de Chagas

O Brasil registrou nos últimos dois anos 489 surtos e emergências em saúde pública, que incluem casos de doenças transmitidas por insetos, como dengue, febre amarela e mal de Chagas, além de enfermidades transmitidas por alimentos contaminados, como registros recentes de beribéri. É o que mostram dados inéditos do Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde (Cievs), órgão do governo federal.

A unidade, criada em 2006 e que funciona 24 horas em uma sala do Ministério da Saúde, em Brasília, monitora todas as situações inusitadas de saúde. São incluídas aquelas que fogem aos padrões de comportamento das doenças de notificação compulsória ou males dos quais não se sabe a origem e que têm potencial para crescer e comprometer a saúde de um grande número de pessoas.

Atualmente, por exemplo, o Cievs acompanha a epidemia de dengue no Rio em razão do seu alto grau de letalidade.

"No ano passado, apesar de o País também ter registrado epidemias, com estimativa de mais de 500 mil casos de dengue, não houve a letalidade da atual explosão de casos no Rio nem a necessidade de atuação direta do órgão nas investigações em Mato Grosso do Sul, por exemplo (que teve epidemia em 2007)", diz o secretário-adjunto de Vigilância em Saúde da pasta, Fabiano Pimenta.

Mas o Cievs foi obrigado a agir em 2007 para entender como a dengue chegou pela primeira vez ao Rio Grande do Sul, apesar das temperaturas amenas, além de ter atuado nos recentes casos de mortes por beribéri.

A doença, registrada desde a escravidão por déficit alimentar e ligada à carência de vitamina B, voltou de outra forma, por meio de uma toxina que contamina o arroz e dificulta a absorção do nutriente. Foi a causa de 38 mortes no País desde 2006.

No caso da malária, doença endêmica que ocorre principalmente na Amazônia Legal e também responsável por um grande número de vítimas todos os anos (cerca de 500 mil), o Cievs entra em ação quando há mudanças nos padrões epidemiológicos.

O centro calcula que nestes dois anos de atuação mais de 40 mil pessoas possam ter sido afetadas diretamente pelos surtos e emergências acompanhados, mas não forneceu dados dos desfechos de todos os casos "inusitados". Disse apenas que todos foram controlados.

Segundo a pasta, só em 2006, quando o Cievs acompanhou 189 surtos e emergências, conseguiu-se confirmar quase 10% dos problemas de saúde das 26 mil pessoas atingidas. Foram registrados 74 óbitos. Naquele ano apenas um Estado não relatou casos inusitados, Sergipe, mas isso não quer dizer que eles não tenham ocorrido. Em 2007 chegou-se ao patamar de 300 casos investigados, com 22 mil pessoas envolvidas.

Entre as emergências de saúde, o centro tem acompanhado mortes de animais que podem alertar sobre doenças em circulação - um exemplo é o caso dos macacos que podem ser reservatórios do vírus da febre amarela - e enchentes que trazem riscos de doenças, como leptospirose - transmitida pela urina de ratos na água acumulada.

Para Pimenta, os mais de 400 eventos coletados pelo centro são resultado de uma melhora na detecção. A comparação com outros países é vista com reservas por especialistas em razão de diferenças climáticas, dos perfis de problemas de saúde e dimensões de cada um.

Modelo

O Centro de Controle de Doenças dos EUA, modelo para ações do Cievs, no entanto, só em 2006 apontou cerca de 30 problemas de saúde de notificação compulsória como preocupantes, que foram investigados e acompanhados.

"Este esforço do Brasil é positivo porque o País não pode ficar vulnerável a ponto de não identificar os casos", diz o brasileiro Jarbas Barbosa, gerente da Área de Vigilância em Saúde e Gestão de Doenças da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Ele considera o Brasil um dos mais preparados para detectar surtos no continente.

Segundo Barbosa, a causa de o País registrar vários tipos de doença varia desde as características próprias das enfermidades, como o fato de na dengue os mosquitos transmitirem o vírus para os seus "descendentes", até as ambientais - clima, manejo inadequado de resíduos -, além de políticas de saúde inadequadas em alguns casos.

As doenças transmissíveis, que eram a principal causa de morte nas capitais brasileiras na década de 30, hoje estão atrás de problemas cardiovasculares e câncer, mas ainda são responsáveis por um número importante de adoecimentos e óbitos. Respondem por cerca de 8,4% das mortes (251,2 mil) entre 2002 e 2004.

"Quando vieram as vacinas, os antibióticos, acreditava-se que essas doenças desapareceriam. É utopia. Quem garante que não há um novo vírus 'aprendendo' a se transferir dos animais para os homens? A preocupação deve ser com a detecção precoce. É a demora que torna os casos mais difíceis", diz Barbosa.

Pobreza e falta de saneamento agravam quadro

Em meio à pobreza e longe da atuação do Estado. Nesses lugares, a maioria das doenças infecto-contagiosas - que persistem no Brasil há mais de um século - costuma aparecer. Não são exclusividade das camadas mais pobres da população, mas encontram nas más condições sanitárias e na falta de atenção do Poder Público uma forma de se manter.

Some a isso a ocupação desordenada do espaço urbano e de áreas próximas a florestas e beiras de rios, por exemplo. Não falta mais nada para doenças como malária, dengue, leishmaniose, tuberculose, Chagas e até mesmo hanseníase continuarem a atingir todos os anos um grande número de brasileiros.

"Existem doenças que estão diretamente ligadas à falta de ação do Estado, outras têm no substrato social o meio de cultura favorável para existirem", diz o médico Luciano Toledo, professor da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), no Rio, e ex-diretor da unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Manaus.

Na Amazônia
, as duas coisas parecem se misturar. Em populações ribeirinhas, doenças desconhecidas do resto do País, como a febre negra de Lábrea, causada pelo vírus da hepatite A, continua presente. Na periferia de cidades como Manaus, a malária é a vilã.

O funcionário público Gerson das Chagas Duarte, de 57 anos, diz que já teve malária 38 vezes. A primeira, quando ainda trabalhava em empresa privada de terraplenagem, por volta dos anos 1980, em obras na periferia de Manaus. "Só peguei (malária) da 'braba'", afirma.

O problema ficou mais recorrente quando ele adquiriu um sítio na região do município de Autazes, a 178 quilômetros da capital amazonense, há aproximadamente 17 anos. "Desde então, cada vez que fui para o sítio, peguei malária. Diminuí até minhas idas ao sítio, porque é muito ruim ficar assim", diz.

Planejamento

Especialistas concordam sobre a dificuldade de controlar doenças que sempre foram endêmicas no País, mas traçam um histórico do descaso do poder público com o controle dessas enfermidades.

Segundo o antropólogo Cláudio Bertolli, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o que se assiste hoje no Brasil é o resultado de um Estado arquitetado para atender apenas as necessidades das elites. "Essas doenças não afetam diretamente as atividades econômicas e o próprio Ministério da Saúde sempre foi usado como moeda de troca na maioria dos governos", diz.

Para o presidente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), Osmar Terra, a criação de programas como o Saúde da Família ajudaram a reverter essa situação em alguns Estados. Mas a falta de planejamento e de mais recursos impede que os lugares mais distantes recebam a atenção necessária.

"No Rio, por exemplo, um bairro como Campo Grande com cerca de 800 mil habitantes tem apenas um hospital e um posto de saúde", diz Terra, que é secretário no Rio Grande do Sul.

 

(O Estado de SP, 6/4)


Data: 07/04/2008