topo_cabecalho
Artigo - O peso do nosso voto, o valor do trabalho de cada um

Por José Edílson de Amorim

 

Novamente, a comunidade universitária da UFCG discute, por meio do seu Colegiado Pleno, o peso do voto das três categorias – servidores técnico-administrativos, servidores docentes e estudantes – nas eleições para reitor e vice-reitor da instituição. A Resolução 01/2008, que disciplina a processo eleitoral, ao ser aprovada, em abril deste ano, foi, ato contínuo a sua provação, alvo de contestação por um conjunto de professores que, histórica e renitentemente, desenvolvem gestão, no interior da universidade e fora desta, para que seja observada a lei federal que trata da matéria, ou seja, a Lei 9.192, de 1995 (Art. 16, inciso III) – lei Paulo Renato –, e a LDB, de 1996 (Art. 56, parágrafo único).

 

Essa contestação provocou uma reunião extraordinária do Colegiado Pleno realizada em 26/08/2008. Nessa reunião, expressei a opinião que segue, talvez melhor sistematizada, pretendendo ser um diálogo com os colegas que pugnam pelo cumprimento da lei federal e não pela decisão do Colegiado Pleno.

 

Toda vez que tenho de enfrentar essa discussão, me vem a sensação de que o calendário está andando p’ra trás: primeiro, porque sempre imagino essa discussão superada no interior da comunidade acadêmica; depois, porque comecei a discutir a questão de uma perspectiva diferente da que se coloca hoje. Ingressei na universidade em 1983, no CFP, Campus V da UFPB, em Cajazeiras; em 1984, apoiei a formação de uma chapa concorrente à direção desse Centro e participei da primeira eleição na universidade. Naquela ocasião, o movimento estudantil, liderado pelo DCE, defendia o voto universal, com bastante energia, a partir da argumentação inicial de que a universidade é feita, majoritariamente, pelos discentes: “a universidade é dos estudantes” como se dizia então.

 

Eu tinha compreensão diversa. Aprendi que a universidade é um local de produção, de sistematização e de circulação do saber e, como tal, não pode ser, somente, dos estudantes, mas dos servidores técnico-administrativos e dos servidores docentes também; trata-se de uma instituição social em que trabalham categorias com atribuições diferenciadas e com direitos demarcados segundo as atribuições de cada uma. Essa particularidade repercute na forma de escolha dos dirigentes da instituição: o direito de escolha de uma categoria, que tem expectativas bem particulares com relação aos dirigentes, tem de ser partilhado com as demais que, por sua vez, ostentam seus próprios direitos.

 

Uma organização social complexa, com três categorias que se movem com tarefas distintas, com objetivos imediatos diferentes, com um número desigual de componentes, mas com responsabilidades compartilhadas, precisa estabelecer formas de convivência e de participação dessas categorias, para sua gestão, de maneira a acolher sua complexidade. E a primeira questão dessa forma de participação é o peso, ou o poder de decisão, que cada categoria detém na escolha dos dirigentes.

 

O critério quantitativo não serve porque a desigualdade numérica entre os estudantes e as demais categorias é enorme. Então, recorre-se ao critério da qualidade. Só que, nesse ponto, os docentes acumularam mais rápido, na história de formação das universidades, o poder de pressão política e de organização de classe. Esse fato se expressa na distribuição majoritária dos cargos de direção, de chefia e de coordenação entre os servidores docentes. Então, ficou mais fácil, para essa categoria, atrair para si a referência de qualidade acadêmica que a universidade detém e o selo de confiança e de competência administrativa que a sociedade e o governo esperam dos dirigentes públicos.

 

Mas veja-se que esse modo de pensar e de agir pode não considerar, integralmente, a opinião, aqui expressa, sobre o papel da universidade, além de se apoiar em uma dicotomia nascida da racionalidade técnica que é a divisão das tarefas acadêmicas em atividades-meio e atividades-fim: uma a cargo dos servidores técnico-administrativos; outra a cargo dos docentes; esta vale mais do que aquela; uma é realçada, se não nobilitada; a outra é afastada para o fundo da cena, se não obliterada. Nessa compartimentação, qual o lugar dos alunos?

 

Primeiro, sem eles a universidade não seria universidade. Seria um instituto de pesquisa, uma agência de projetos e serviços ou algo parecido; depois, por serem em grande quantidade, eles criam as condições objetivas para o fomento da qualidade: diálogo e participação, disputa e interação, pressão e cobrança. Os estudantes são, enfim, a representação mais concreta da sociedade na universidade.

 

Pode-se argumentar que o estudante é um ente temporário na instituição acadêmica; o que é uma meia verdade: ele é passageiro na qualidade de indivíduo; mas é permanente como categoria. Como indivíduo, poderá votar em um período próximo de sua saída da universidade, ou mal tendo nela ingressado; porém, não estamos falando de indivíduos isolados, falamos de uma categoria com uma experiência considerável de interação entre si e entre as demais organizações da sociedade; uma categoria com presença histórica marcante em momentos decisivos para a universidade e para a sociedade brasileiras. Reafirmando, os estudantes não são indivíduos isolados, mas sujeitos em interação.

 

Desse modo, a qualidade não pode estar segregada com os docentes. É uma produção que carrega a contribuição de todos os erros e de todos os acertos dos indivíduos que integram as três categorias.

A presença dos estudantes, mais a interação observada nas experiências bem sucedidas na prática acadêmica, entre docentes e técnicos, tornam visivelmente precária a separação entre o fim e os meios.

 

Ao fim, ganha a compreensão de que a universidade cumpre uma finalidade social, nos termos já expressos, com a qual todos temos responsabilidades, para a qual estudantes, servidores técnico-administrativos e servidores docentes contribuem de forma diferente, mas decisiva. Senão vejamos: o mau desempenho do estudante tem repercussão mensurável na estatística de qualidade e na matriz de recurso da instituição; da mesma forma, um professor refratário e ou absenteísta pesa, negativamente, no desempenho de qualquer curso; da mesma maneira, um técnico relapso pode arruinar a pesquisa, inviabilizar a biblioteca, comprometer a rotina e errar no pagamento do nosso salário.

 

Com o privilégio da qualidade que reclamam para si, os servidores docentes, signatários da defesa da lei com a proporcionalidade desigual, argumentam que um dos fundamentos da democracia é o respeito às leis vigentes. Concordo; mas não posso concordar com o restante do argumento que faz a lei subsumir a democracia, sendo esta um corolário do império da lei. Isso não é verdade. A lei pode garantir a democracia ou não; em alguns casos, a lei pode ser invocada a atentar contra a democracia. É que, entre ambas, está a legitimidade, esse conceito que os movimentos sociais vêm nuançando de significação histórica cada vez mais rica. Um procedimento pode não ser legal e ser legítimo: a legitimidade deriva da democracia, que supõe embate e diálogo, que supõem, por sua vez e quase sempre, a necessidade de sua conversão em lei, superando-se, nesse movimento, uma lei que caducou; a lei é o pólo contingente, conjuntural, plasmável, dinâmico, circunstancial e conseqüente do debate legítimo de idéias. A legitimidade está no pólo da democracia, que é construção em movimento. A história se faz assim: com o desejo de estabilização e com a vontade de superação. Por isso, as leis passam e se modificam. Em uma palavra, a lei não é uma competência que se auto-exerce. Carece de leitura coletiva e negociada; carece de especialistas como advogados e juízes; e de instituições como os tribunais.

 

Ademais, reclamar obediência à lei não significa fetichizá-la como algo puro e sem mácula. A própria lei ora invocada, a lei Paulo Renato, não tem origem pura: é fruto enxovalhado de injunções conjunturais forjadas pelo interesse e pelo pragmatismo. Na UFRJ dos anos 90, o Reitor Vilhena não ganharia as eleições senão com uma participação restrita da comunidade, daí a diligência do amigo ministro Paulo Renato Souza em engendrar o dispositivo da proporcionalidade desigual entre os segmentos que integram a universidade. Não satisfeito e, ciente de que a lei muda ao sabor dos tempos, esse ministro fez o dispositivo se abrigar, também, na LDB – uma lei com cancha para resistir mais tempo às revisões conjunturais.

 

Portanto, a obediência sem questionamentos inibe o diálogo, estreita a compreensão acadêmica sobre a sociedade e amesquinha nossa capacidade de pensar e de administrar as diferenças entre nós. Isso nos põe vulneráveis perante a sociedade que nos dá sustentação.

 

A par do debate sobre o peso do nosso voto, a sociedade espera o zelo perene pela qualidade do nosso trabalho, para a qual é imprescindível o convívio franco e fraterno, sem desconfiança prévia da capacidade dos outros e sem um sinal de menos para as tarefas que cabem a cada segmento.

 

Pensando dessa forma, o instituto do voto paritário deixa de ser um mecanismo conjuntural, para uso nessa ou naquela eleição, e se converte em componente estrutural, afeto à qualidade do trabalho, na medida da participação que cabe às três categorias e da atribuição que cabe a cada indivíduo.

 

Na universidade, portanto, as tarefas são diferenciadas, para cada categoria, e recebem a marca individual de cada servidor e de cada estudante; mas a responsabilidade sobre a qualidade do trabalho acadêmico é compartilhada – no prejuízo ou no mérito da instituição, está inscrita a responsabilidade solidária de cada um.

 

José Edilson de Amorim é professor da Unidade Acadêmica de Letras e Vice-reitor da UFCG.


Data: 10/09/2008