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Mestres viram doutores e acabam demitidos em universidades privadas

Eles perdem o cargo porque se tornam mais caros para as escolas

A falta de mão-de-obra qualificada é uma das maiores ameaças ao crescimento econômico, segundo alguns economistas, empresas ou mesmo o governo. O país forma mais de 10 mil doutores por ano. No entanto, esta elite do meio acadêmico brasileiro, cada vez mais, encontra dificuldades para arranjar emprego, sobretudo nas universidades, responsáveis pela preparação de profissionais de ponta, supostamente, tão exigidos pelo mercado de trabalho.

O problema ocorre, de acordo com o Sindicato dos Docentes de Instituições de Ensino Superior (Andes), na rede privada, onde as demissões de professores com doutorado ou livre-docência, nos últimos cinco anos, são observadas com freqüência, logo após a obtenção do título acadêmico.

"Quando fui fazer a homologação da rescisão de meu contrato de trabalho no sindicato, tive uma surpresa: encontrei quatro outros professores de direito", relata José Cretella Neto, ex-docente da Universidade Paulista (Unip), a maior do país em número de alunos, demitido em 2004, meses depois de receber a livre-docência.

"Dois desses colegas tinham obtido o doutorado na USP, como eu. Um outro, na Universidade Complutense de Madri, Espanha. Finalmente, o último, na Universidade de Nagoya, no Japão. Perguntei o porquê de estarmos sendo dispensados e todos me deram a mesma informação: redução de custos", conta.

Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as universidades devem ter um terço do corpo docente formado por mestres ou doutores. Em geral, esses professores titulados recebem um percentual a mais por hora/aula. "Como a lei exige de forma vaga, as universidades privadas preferem ter um terço de mestres e nenhum doutor. Preferem também especialistas com cursos lato sensu", afirma Cretella.

O professor, no entanto, faz questão de sublinhar que as universidades cumprem a lei, mas defende que a lei precisa mudar porque "a economia de custos das universidades para fazer frente à concorrência" está comprometendo a qualidade do ensino superior.

"Não é a realidade", afirma Hermes Ferreira Figueiredo, presidente do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior do Estado de São Paulo (Semesp) e proprietário da Universidade Cruzeiro do Sul. "Casos isolados podem dar a impressão de que há um movimento de demissão, mas isso não é uma rotina no setor", garante.

Segundo ele, o país está formando mais doutores, as universidades privadas estão empregando mais titulados, porém, a demanda continua inferior à oferta desta mão-de-obra. "O número de doutores depende do programa pedagógico de cada instituição, a universidade é como qualquer empresa, há uma avaliação de desempenho, não publicou durante o ano, será dispensado", diz Figueiredo.

O presidente do Andes, Ciro Teixeira Correia, discorda: "A situação é séria e se dá pelo descontrole do governo sobre o setor privado, muitos professores estão escondendo o título de doutorado".

De acordo com ele, a solução passa por adaptar o sistema privado às regras das universidades públicas, onde há o regime de dedicação exclusiva. "Isso faz toda a diferença na qualidade do ensino. O professor-horista não tem vínculo com a universidade, esta falta de comprometimento reduz a produção de pesquisa e sem ela o conhecimento não avança e o ensino fica pior", acredita.

Figueiredo rebate: "Uma universidade numa cidadezinha de Tiririca da Serra não tem condição de contratar um doutor por tempo integral para pesquisar e em nenhum lugar está escrito ou provado que um doutor é melhor professor do que um profissional com experiência".

Segundo Figueiredo, o mercado de trabalho para doutores é "quase exclusivo" em universidades e, diante do aumento do número de titulados, está ocorrendo uma "pressão das corporações" pelo crescimento de vagas. Para ele, as demissões podem ocorrer por supressão de cursos, por exemplo.
Somente uma pesquisa detalhada poderia comprovar os motivos reais. Apesar de afirmar que as demissões têm pouca relação com os custos, Figueiredo reconhece que a exigência por mais professores titulados aumenta as despesas: "É fácil falar em ensino mais caro por uma mensalidade menor, mas esta equação não fecha". Se o motivo das demissões é de difícil aferição, as conseqüências já foram medidas.

No Índice Geral de Cursos, avaliação das instituições divulgada pelo Ministério da Educação no início do mês, apenas 4,9% das universidades privadas receberam notas máximas (4 ou 5), sendo que as maiores do país ficaram entre as 40 piores na lista de 173 avaliadas.

O Valor consultou o site de várias universidades privadas e constatou que poucas atendem à portaria 2.864/2005, que obriga a divulgação nominal do corpo docente de cada curso, indicando a área de conhecimento, titulação, qualificação profissional e regime de trabalho (inciso IV).

A maioria dos sites está preocupada em convencer o potencial aluno de que as instituições oferecem qualificação profissional, ampliando as chances no mercado de trabalho e nenhuma delas informa o número de alunos por turma que, em muitos casos, passa de 100, obrigando o professor a dar aula com microfone como em cursinhos pré-vestibular.

"Isto tudo decorre da falta de fiscalização por parte do governo", acusa Correia. É justamente essa promessa que faz o Ministério da Educação em resposta a onda de demissões de doutores: ampliar o cerco às instituições privadas.

O secretário de Ensino Superior do MEC, Ronaldo Motta, reconhece que o problema "é sério", mas acredita que será evitável à medida que os processos de regulação e supervisão tornem-se mais rigorosos, segundo ele, como tem sido a prática recente.

No caso, o próprio IGC. O índice contempla entre suas variáveis o corpo docente, quanto à titulação ("valorizando sobremaneira os doutores") e o regime de trabalho (identificando negativamente a presença excessiva de horistas).

Como agora a divulgação será anual, Motta garante que a tendência será de queda na avaliação das instituições com baixo número de doutores.

"Quem agir assim, demitindo seus doutores, será certamente identificado na avaliação institucional e será penalizado com a assinatura de um protocolo de compromisso, tal como expresso na Lei dos Sinaes", diz, referindo-se ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, criado em 2004. Motta, porém, ressalta que não há uma regra universal que aponte que todos os professores devam ter dedicação exclusiva.

No Senado Federal, um projeto-de-lei (PL) começou a tramitar, há um ano, para obrigar as universidades privadas a estabelecer um corpo docente formado de, pelo menos, 25% de doutores, 50% de mestres (ou doutores) e 40% de professores em regime de trabalho em tempo integral.

A agilidade na tramitação e a aprovação do PL dependem, no entanto, da vontade do governo de defender a idéia, pois a relatoria estava com um senador do PT, Siba Machado, suplente da ex-ministra Marina Silva, que retornou ao cargo.

"A educação superior no Brasil tem dado passos gigantescos nos últimos anos. Mas são passos capengas", diz Arthur Virgilio Neto (PSDB-AM), autor do PL. "O número de cursos e alunos aumenta, mas a qualidade cai. Por que isso ocorre? Pela massificação desacompanhada de rigor na composição do corpo docente, o que repercute na tímida atuação das universidades brasileiras no campo das pesquisas. É isso que pretendo corrigir", justifica o senador. A idéia, porém, foi recebida com protestos pelas universidades.

Até mesmo instituições que contratam um grande número de professores titulados, como as PUCs, reagiram à criação desta obrigatoriedade legal. Segundo o Andes, a concorrência no setor tem empurrado as universidades tradicionais a adaptarem-se às regras de mercado.

"A aprovação desta lei seria descabida. Não é o Legislativo que deve dizer quantos doutores tem que ter uma universidade, que não é uma concessão pública, como os meios de comunicação, que não são obrigados a contratar só doutores em jornalismo", compara Figueiredo.

(Valor Econômico, 19/9)


Data: 19/09/2008