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Ensino de medicina está doente

Com notas baixas, 17 faculdades são punidas pelo MEC; no Rio, Unig tem superlotação

Profissionais de jaleco branco dominam a cena no ambulatório do Hospital São José do Avaí, em Itaperuna. Eles estão por toda a parte, cercando os pacientes de atenção. As consultas são baratas, e a espera não é grande. À primeira vista, o lugar lembra uma espécie de paraíso da medicina.

Mas aos olhos dos auditores do Ministério da Educação (MEC), que visitaram o hospital em outubro, a impressão é outra. Após dois dias de inspeção, eles concluíram que ali se pratica a forma mais perversa de formação do futuro médico no Brasil.

Os profissionais de jaleco são, em sua maioria, alunos da Universidade Iguaçu (Unig), campus de Itaperuna (no Noroeste fluminense), que se acotovelam, num ambiente congestionado de alunos, no esforço diário de tentar aprender.

- As queixas dos pacientes são frequentes, principalmente de mulheres, que se sentem constrangidas de fazer um exame cercadas por cinco ou seis estudantes - diz a assistente social Maria das Graças Silva, secretária-executiva do Conselho Municipal de Saúde de Itaperuna.

Enquanto as diretrizes do MEC preconizam de quatro a cinco alunos no máximo, os auditores do ministério constataram que, em Itaperuna, as aulas do internato chegam a formar rodas de até 12 alunos em torno do paciente, fazendo do estudante um mero observador, incapaz de interferir no processo.

Esse excesso de alunos por paciente, situação que impede um campo de prática adequado à formação dos médicos, foi uma das principais razões da suspensão do vestibular da Unig-Itaperuna, decisão tomada pelo MEC em dezembro. Pelas deficiências constatadas, a Unig-Itaperuna foi uma das três faculdades no país, junto com a Severino Sombra, de Vassouras, e Superior de Valença, também do interior fluminense, a ter o vestibular cancelado pelo MEC.

Ao todo, 17 cursos de Medicina no país estão na mira do ministério, após terem recebido notas 1 ou 2 no Exame Nacional de Cursos (Enade), o antigo Provão. Esses cursos foram submetidos pelo MEC a um processo de revisão iniciado em abril de 2008. Algumas faculdades tiveram que diminuir o número de vagas, e outras foram obrigadas a reestruturar os cursos.

No caso da Unig-Itaperuna, o MEC precisou ir à Justiça para fazer valer sua decisão. A Unig ignorou a medida e, além de realizar o vestibular, convocou os cem candidatos aprovados para a matrícula. O processo só foi interrompido depois que o governo federal obteve liminar na 1ª Vara Federal da cidade, obrigando a Unig a suspender o início das aulas, previsto para amanhã.

Para reitor, festa rave provocou nota 1 no Enade

O curso de Medicina de Itaperuna tem cerca de 850 alunos (do segundo ao 12operíodos), que pagam R$ 2,5 mil de mensalidade. Para o MEC, a estrutura oferecida não suporta tanta gente. Há 12 anos, quando foi aberta na cidade, a Unig oferecia 50 vagas por semestre. A partir de 2004, porém, os planos empresariais de seus gestores começaram a inchar o curso.

A capacidade subiu para 60 alunos. Depois, 70, até chegar aos cem há três anos, causando o afastamento do coordenador do curso, o médico Renan Tinoco. Também diretor-geral do Hospital São José do Avaí, com o qual a Unig mantém convênio, Tinoco se opôs à expansão.

Como o inchaço, as receitas cresceram na mesma proporção em que a qualidade do ensino caiu. Para garantir o mínimo de formação prática, principalmente os alunos do internato (do 10º ao 12º períodos), a Unig precisou buscar convênios com outros hospitais, como o HospitalMaternidade Santa Teresinha e o Centro Regional de Saúde Raul Travassos. A direção da Unig garante que os novos convênios atendem à demanda, apesar do desempenho obtido no último Enade, no qual a Unig teve conceito 1.

-Os alunos saíram de uma festa rave e foram direto para a prova - disse o reitor da Unig, Júlio César Silva, para explicar o resultado.

Mas, na inspeção de outubro, os auditores do MEC se detiveram principalmente no internato, a parte final do curso destinada às atividades práticas. Nessa fase, um bom curso de Medicina deve exigir a presença do acadêmico em campo nas áreas básicas, como clínica médica e cirurgia.

Além do excesso de alunos por paciente, o relatório dos auditores indicou falhas no projeto pedagógico, insuficiência de aulas no campo e no acervo da biblioteca e carga horária menor do que a declarada oficialmente, além de falta de autonomia em relação à matriz da Unig, fundada pela família do ex-deputado federal Fabio Raunhetti em Nova Iguaçu.

Semana passada, a Unig recebeu a minuta de um termo de saneamento de deficiência, em que ela deverá se comprometer a tomar medidas de correção em um ano. Caso as providências não sejam tomadas, o MEC manterá o veto ao vestibular, o que, a longo prazo, levará ao fechamento do curso.

Falta de informação para aprovados no vestibular é principal reclamação

A situação do curso de Medicina da Unig-Itaperuna mergulhou alunos, professores, dirigentes e vestibulandos aprovados numa crise sem precedentes na instituição.

-Se tiver de cancelar a matrícula, vou processar a Unig por danos morais - ameaçou o baiano Jonathas Brazil, de 24 anos.

Johnny, como Jonathas é conhecido entre os amigos, mora em Jequié e percorreu 18 horas de estrada, em dezembro, para realizar o sonho de passar no vestibular de Medicina. De volta a Itaperuna, na esperança de começar as aulas amanhã, foi orientado a ligar "na semana que vem" para Unig. O rapaz reclama da desinformação: - Eu me sinto afetado porque, além do dinheiro e do tempo perdidos, comemorei a aprovação.

Advogados da universidade tentam validar resultado das provas

O gerente acadêmico da Unig, André Monteiro, alegou que o vestibular só foi realizado, mesmo após a decisão do MEC, em respeito aos mais de 600 candidatos inscritos. Ele alegou que a universidade foi comunicada menos de 48 horas antes da prova e não teve direito à defesa prévia.

Embora assegure que a direção do curso já admite rever as cem vagas oferecidas (até sexta-feira, 17 aprovados desistiram e receberam o dinheiro de volta), os advogados da Unig travam com o MEC uma batalha judicial para validar o exame. Eles recorreram da liminar da juíza Maria Cristina Botelho Kanto. A crise está agora nas mãos do desembargador Guilherme Couto, relator do caso no Tribunal Regional Federal da 2aRegião.

- Não sabemos nem sequer as modificações exigidas pelo MEC-disse o gerente.

Para deter a crise, a direção do curso foi bater novamente à porta do ex-coordenador Renan Tinoco, um conceituado médico da região. Coube a seu filho, Eugênio Carlos Tinoco, cirurgião vascular com doutorado na UFRJ, a missão de recuperar a credibilidade perdida ao assumir o antigo posto do pai.

Ele disse que lamenta ver na berlinda um projeto que encantava a comunidade médica do Hospital São José do Avaí, referência do Noroeste fluminense e de cidades do Espírito Santo e Minas Gerais. Eugênio e seu antecessor, Humberto Ladeira, agora transformado em coordenador adjunto, dizem que um dos problemas crônicos no curso é a falta de qualificação do jovem que entra na universidade.

- Muitos deles não dominam o inglês, quando a maioria dos livros importantes está escrita neste idioma - disse Eugênio.

Para amenizar o problema, a Unig oferece inglês como disciplina eletiva, mas Humberto Ladeira disse que, pelo grau de dificuldade e possibilidades de reprovação, o curso de língua atrai poucos interessados. O ex-coordenador admitiu que os salários atrasaram, e o hospital desalojou os alunos do internato da unidade contígua ao hospital, obrigando-os a dividir com os colegas dos primeiros períodos as salas do campus fora da cidade, a 15 minutos de carro.

Para o ex-presidente do diretório acadêmico da Medicina, Marcelo Antunes, os alunos têm que ver a ação do MEC com outros olhos.

- Vai ser bom para moralizar. Não há material humano para tantos alunos. Há muita gente examinando o mesmo paciente - disse o ex-aluno, hoje médico.

(O Globo, 8/2)


Data: 09/02/2009