topo_cabecalho
Ensino médio ganha espaço na agenda pública

Roubo das provas do Enem atrapalha programa que desde 2004 elevou em 47% a verba por aluno

Depois de décadas estacionado num limbo entre o fim da educação básica e a entrada na universidade, o ensino médio público ganha espaço na agenda das políticas públicas brasileiras.

O novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que foi adiado na semana passada por causa do roubo das provas, afetando mais de 4 milhões de jovens, é a parte mais visível das mudanças planejadas pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, que defende a substituição do vestibular pelo exame e seu uso como catalisador de transformações no currículo desta etapa da formação escolar.

O ensino médio é a etapa da educação menos assistida financeiramente pelo setor público. O investimento direto anual por aluno neste ciclo, apesar de ter crescido 47% em valores reais desde 2004 ainda é o mais baixo (R$ 1.572), quase oito vezes menor que o valor por estudante das universidades federais (R$ 12.322) e inferior também ao gasto por crianças na pré-escola (R$ 1.647), segundo cálculos de 2007 do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano passado 84% dos jovens com idade entre 15 e 17 anos estavam na escola, não necessariamente no ensino médio.

O número de jovens fora da escola ainda é grande, mas junto com o esforço da universalização, o governo começou a mirar a qualidade do ensino médio. Diante da realidade da forte evasão escolar nessa faixa etária, começou-se a busca de mecanismos e práticas para segurar o jovem na escola, tornando o ensino menos "fechado", mais atraente para jovens que, muitas vezes, chegam à escola depois de um dia inteiro de trabalho.

A intenção é que em alguns anos, as 12 disciplinas do ensino médio sejam abordadas de maneira interdisciplinar dentro e fora da sala de aula, com foco em quatro áreas de estudo (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas), sob o conceito conhecido por "articulação de saberes". E é dessa forma que as matérias serão cobradas já no Enem deste ano, que teve as novas datas confirmadas ontem pelo MEC para os dias 5 e 6 de dezembro.

O ministro Fernando Haddad diz que não é preciso esperar para resolver primeiro os graves problemas da educação infantil para, depois, atacar as necessidades do ensino médio.

"Não temos uma compreensão fragmentada da educação, isso era próprio daqueles que aceitavam o cobertor curto como um dado da natureza e, na falta de recursos, focavam apenas um setor. O ensino médio estava excluído do Fundef, não havia livro didático, alimentação ou transporte, Bolsa Família, nem incentivo financeiro por Estado", diz ele, listando instrumentos agora oficializados para esta etapa educacional.

Em 2007, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que destina recursos a Estados e municípios, substituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), criado no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e que não contemplava o ensino médio.

"Aumentamos o cobertor, por isso dobramos o orçamento global do MEC [entre 2004 e 2009, o investimento do Ministério passou de R$ 21,4 bilhões para R$ 41,6 bilhões]. A complementação da União no Fundeb é dez vezes maior que a média dos dez anos de vigência do antigo Fundef, que foi de R$ 500 milhões de 1996 a 2007", diz Haddad.

O ministro explicou ainda que não haverá contingenciamentos seja no orçamento do MEC, seja nos repasses da União para o Fundeb, que está previsto em R$ 5,1 bilhões para 2009. A crise financeira internacional afetou a previsão de arrecadação de Estados e municípios e forçou a revisão dos depósitos no fundo, que passará a contar com R$ 72,7 bilhões até o fim do ano, 11,3% a menos que a expectativa inicial de R$ 81,9 bilhões. "Mesmo assim o fundo terá crescimento em relação às receitas do ano passado", completa Haddad.

Mantidas essas condições do fundo, somente o Estado de São Paulo terá R$ 2,5 bilhões a menos em caixa para investir em educação. Mas o problema maior vem dos municípios, que reclamam da falta recursos para o pagamento de professores - 60% do Fundeb vão para salários e devem dar conta, inclusive, do piso nacional de R$ 950 - e cobram a cobertura da diferença pela União.

A deputada federal Maria do Rosário (PT-SP), presidente da Comissão de Educação da Câmara, confirmou que esse gasto extra não está nos planos do governo federal e os prefeitos terão que se adaptar à realidade atual.

O professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Moacir Gadotti lembra que o Fundeb complementa outras políticas deixadas por FHC.

"O fundo hoje repassa recursos com base no marco legal criado pela LDB e nos sistemas de avaliação, que foram os dois legados mais importantes daquele governo. Mas como a educação tem sempre notícias boas e más, a gestão do Fernando Henrique focou apenas o ensino fundamental e prejudicou muito a educação infantil, o ensino médio regular e técnico e a educação de jovens e adultos, que ficaram como responsabilidade dos Estados e municípios", diz.

Primeiro o Fundef e agora o Fundeb não mudaram, mas responderam a uma antiga crítica feita à condução da educação brasileira pelo governo: o foco no ensino superior em detrimento da educação básica. De acordo com um relatório do Tribunal de Contas da União, em 1999, foram gastos R$ 8 bilhões no ensino fundamental diante de R$ 609,7 milhões para o ensino médio regular, nada para o profissionalizante e R$ 5,5 bilhões para a educação superior.

Atualmente, esses gastos estão mais equilibrados. O MEC espera fechar seu orçamento em 2009 com execuções da ordem de R$ 15,8 bilhões no campo do ensino superior e R$ 20,7 bilhões nos três níveis da educação básica (infantil, fundamental e médio). Só no médio profissionalizante a União espera fechar o ano com aportes na ordem de R$ 2,6 bilhões, valor que representa mais que o dobro do R$ 1,1 bilhão de 2002.

Proporcionalmente, a relação entre o valor gasto por aluno no ensino público superior e na educação básica caiu de dez para seis vezes desde 2002.

Mesmo com o aumento dos recursos, o Brasil não cumpre a recomendação da Unesco, entidade da ONU para educação e cultura, de investir 6% do Produto Interno Bruto (PIB) em  educação. Segundo Haddad, o país gasta 4,6% do PIB no setor.

Para o economista Naercio Aquino Menezes Filho, professor do Insper (antigo Ibmec-SP), o desafio colocado à educação atualmente é o avanço na qualidade. "O Brasil vai mal na qualidade e aí não há relação clara entre gastos e avanço no aprendizado. Há municípios que alcançam ótimas notas nos sistemas de avaliação e chegam a gastar R$ 3 mil por aluno em um ano, enquanto em outras cidades a média de gasto anual é de R$ 2 mil para a mesma nota."

Segundo ele, a grande questão do sistema de ensino hoje no Brasil é a gestão. "Primeiro, os professores do ensino médio não foram os melhores alunos do nível médio. Além disso, existem escolas onde diretores e professores mudam a cada ano letivo. Nas melhores escolas de São Paulo, 45% dos diretores e professores ocupam o cargo há mais de seis anos; entre os colégios com as piores notas, apenas 17% dos profissionais trabalham há mais de seis anos."

O ministro da Educação defende o novo Enem como um dos instrumentos para combater as deficiências do ensino médio, a começar pela possibilidade de mudar práticas tradicionais de ensino até chegar à substituição completa do vestibular.

"O Enem pode destravar a camisa de força do vestibular e contribuir para o processo de discussão das mudanças curriculares, torná-lo mais diversificado, mais atraente, uma tentativa de dialogar com a realidade do aluno. Para a medida ser eficiente, é preciso que a comunidade de educadores passe a considerar o ensino médio como um campo de experimentação e inovação", argumenta Haddad.

Se o roubo das provas do Enem e seu consequente adiamento não atrapalhar os planos anteriores, a prova será aceita para o ingresso em 24 universidades públicas e 30 institutos federais.

Para o sociólogo Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a receita do novo Enem pode perpetuar a camisa de força do vestibular tradicional a que se refere o ministro. "A formulação do novo Enem envolveu muito mais as universidades do que as escolas. O resultado é que essa reorganização pode ter a mesma influência que o vestibular tradicional ainda tem no currículo do ensino médio hoje.

Então, a história continuará sendo a mesma: da metáfora do burrinho com a cenoura, que tem o único objetivo de pegar a cenoura, que é o diploma universitário", questiona Cara.

Segundo ele, nenhum país tem estrutura econômica para acomodar a educação superior universal. "É o tipo de especialização que muitas pessoas não têm o interesse de fazer, elas querem uma vaga no mercado de trabalho, não querem ser doutas numa determinada profissão. O reflexo disso são estudantes em faculdades de baixa qualidade, com alunos de direito e até de psicologia, disputando vagas em empresas de telemarketing", alerta.

Aliado ao novo Enem, o programa Ensino Médio Inovador (EMI) é a nova aposta do governo federal para superar essas dificuldades. Lançado pelo MEC em abril deste ano, o projeto traça um conjunto de propostas para serem integradas aos currículos das escolas estaduais. O texto do EMI prevê "o fomento de bases para uma nova escola" e recomenda a adoção de ações ambiciosas: professor com dedicação exclusiva, ensino centralizado na leitura e matérias optativas na composição de 20% da carga horária total do curso.

Na semana retrasada foi encerrado o processo de consulta às Secretarias Estaduais de Educação, que enviaram ao MEC planos de ações pedagógicas com base no EMI. O coordenador do programa, Carlos Artexes, da Secretaria de Educação Básica do MEC, diz que caberá à União providenciar recursos automáticos para as escolas inovadoras por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e de outros convênios. "Políticas já existiam, mas era preciso avançar mais na questão do currículo."

Fernando Haddad resume o conjunto de medidas destinadas ao ensino médio (e a toda educação pública brasileira) com uma observação. "Não existe a bala de prata na educação. Não há uma solução mágica. É uma soma de fatores que dá resultado", diz ele.

Mesmo sem bala de prata, diz, está no Congresso a lei mais importante desde a Constituição de 1988 para educação: a proposta de emenda constitucional (PEC) 277, que acaba com a desvinculação de receitas da União (DRU) até 2011 foi aprovada na Câmara dos Deputados na semana passada e agora aguarda avaliação do Senado.

O fim da DRU garantiria mais R$ 7 bilhões à educação em 2010 e R$ 10,5 bilhões a partir de 2011, quando o encargo deixaria de existir por completo. Além dos recursos, a PEC determina que o direito ao ensino básico obrigatório e gratuito dos 4 aos 17 anos seja implantado progressivamente até 2016 - de acordo com a Constituição de 1988, é considerado direito do brasileiro o acesso à educação dos 6 aos 14 anos.

 

(Valor Econômico, 7/10)


Data: 07/10/2009